NIETZSCHE – PARA ALÉM DA SAÚDE E DA DOENÇA
Estar livre do ressentimento, estar esclarecido sobre o ressentimento – quem sabe até que ponto também nisso devo ser grato à minha longa enfermidade!” – Nietzsche, Ecce homo, porque sou tão sábio, §6
Um bom psicólogo é aquele observador atento, que não perde um detalhe de sua doença, exatamente para dela extrair o máximo de valor. De sua doença se produz, se cria e se extrai saberes que o homem saudável jamais seria capaz. No psicólogo, pensamentos e atitudes são sintomas de uma potência interna que se faz carne e se exterioriza. Por isso a importância da doença para o psicólogo Nietzsche, para ele, poucas questões são tão atraentes como a relação que há entre entre filosofia e saúde.
É preciso entender aqui o corpo como um emaranhado de forças que se cruzam, atravessam, misturam. Saúde, doença, filosofia, fisiopsicologia estão intimamente relacionadas. O que é estar doente e como esta doença constitui um pensamento filosófico? Há várias formas de filosofar, também várias formas de ser saudável e doente. Interpretar a filosofia como um sintoma de um corpo nos permite pensar o pensamento como fruto mais autêntico da vida.
Um perigo: um filósofo atraído pelo modo transcendente de pensar: Nirvana, sabbat, céu (e seu posterior julgamento final). Essa hipnose dos desprezadores do corpo é a tentação dos modos ressentidos de se pensar, o consolo da filosofia é a busca pela suprema paz. Nietzsche torce o olhar para estas promessas teológicas e como bom filósofo da suspeita se pergunta: não teria sido a doença que inspirou tais pensamentos?
Num homem são as deficiências que filosofam, no outro, as riquezas e forças. O primeiro necessita da sua filosofia, seja como apoio, tranquilização, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si; no segundo ela é apenas um formoso luxo, no melhor dos casos a volúpia de uma triunfante gratidão, que afinal tem de se inscrever, com maiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos” – Nietzsche, Gaia Ciência, prólogo §2
Para Nietzsche, há dois tipos de pensamento, simplesmente porque existem duas possibilidades corporais. A sensação de que a potência aumenta, neste caso, uma filosofia emana de sua mais pura afirmação, uma virtude dadivosa, um luxo, um plus de afirmação. No outro caso, um corpo que sofre, se deixa levar pela doença e de sua fraqueza emite signos, expressão fidedigna de seu sofrimento, uma busca por consolo, mitigação, sentido, fuga, busca pela inebriação. Há muitos caminhos para a filosofia, ela passa pelos picos brilhantes da força e da virtude, mas também se arrasta pelo lodaçal da má consciência, do sofrimento atroz, do ranger de dentes. Uma filosofia pode ter asas ou patas de inseto, pode dançar ou se rastejar.
Como o viajante que se deixa dormir, que rende-se ao sono valendo-se da confiança de que algo de não consciente o acordará no momento certo: um excedente de força, uma potência que se manifesta no momento correto. Aí está a relação entre o viajante e o fisiopsicólogo: os dois sabem que algo neles não dorme. Eles encaram o abismo apenas pelo tempo necessário, há uma prudência em sua ousadia. Observar o abismo torna o olhar mais aguçado, ampliando os horizontes.
Nós filósofos, ficando doentes, nos sujeitamos à doença de corpo e alma por algum tempo – como que fechamos os olhos para nós mesmos. E, tal como ele sabe que alguma coisa não dorme, que algo conta as horas e o despertará, também nós sabemos que o momento decisivo nos encontrará despertos” – Nietzsche, Gaia Ciência, prólogo §2
Sim, o viajante dorme, mas apenas para andar mais, ele sabe que seu corpo o acordará no momento em que o primeiro raio da aurora romper o céu noturno e atingir seu rosto. O sono é para o viajante o que a doença é para o filósofo: motivo de grande alegria e de grande atenção. A doença é o que permite ao filósofo retornar com mais força e ir além. Um viajante não se perde no sono da mesma maneira que o filósofo não se perde nos labirintos de sua própria doença.
Em face disso, como pode proceder um fisiopsicólogo? Como a psicologia, “rainha de todas as ciências”, pode lidar com a saúde e a doença, sintomas de um corpo? Antes de mais nada, um filósofo não pode desprezar a doença, nem em si nem nos outros, a doença não é a figura negativa da saúde. A doença nos permite deixar à espreita, ela nos dá outras perspectivas. Doentes, ficamos à beira do mar do conhecimento, usando a dor como isca.
Não gostaria de despedir-me ingratamente daquele tempo de severa enfermidade, cujo benefício ainda hoje não se esgotou para mim: assim como estou plenamente cônscio das vantagens que a minha instável saúde me dá, em relação a todos os robustos de espírito” – Nietzsche, Gaia Ciência, prólogo §3.
Existem dois tipos de doença, a doença do que ainda se encontra forte o bastante para se deixar estar doente, e a doença que consome o que resta de energia e se deixa contagiar pelo ressentimento.
O segundo sucumbe ao ressentimento e está ansioso por se entregar, mergulhar sua dor em um grande sentido: “É o Karma, é o pecado original, o homem é mau por natureza“. O ressentimento confisca a doença, a toma em suas mãos. Esta é a grande tarefa de todo filósofo, mergulhar nas profundezas sem se deixar levar pelas correntezas do ressentimento. Não, é preciso força para viver a doença sem cair neste abismo, aqui está a diferença entre o doente incurável, consumido pelo ódio, vingança, e do doente que pode retornar a si, como o viajante que confia acordar ao romper a aurora.
Existem dois tipo de sofredores, os que sofrem de abundância de vida, que querem um arte dionisíaca e também uma visão e compreensão trágica da vida – e depois os que sofrem de empobrecimento de vida, que buscam silêncio, quietude, mar liso, redenção de si mediante a arte e o conhecimento, ou a embriaguez, o entorpecimento, a convulsão, a loucura” – Nietzsche, Gaia Ciência, §370
A doença só é doença quando se torna ressentimento, quando consome as forças do organismo e o debilitam. Em razão desta contaminação, o doente se vê incapaz de esquecer, processar, digerir os acontecimentos de sua vida. Com uma pedra no peito, ele carrega consigo o peso de sua vida, sua história, seu malogro, sua impotência é um fardo pesado. Ao ressentido, lhe falta a força para agir, ele apenas reage, e mesmo sua reação é imaginária, sua vontade, de vingança. A dor perde seu efeito de fortificador, ela fecha os caminhos que antes abria para a grande emancipação e crescimento. No limite, a dor passa de fortificante para veneno.
O que o psicólogo Nietzsche tem para dizer sobre esta condição? Seu mergulho na alma humana lhe mostrou que o Sacerdote Ascético emerge para estancar o sangramento. O ressentimento, e sua irmã, a má consciência, são mitigados pelos remédios dos padres (sejam eles: filósofos, budistas, políticos ou psicanalistas). Ao sacerdote Ascético cabe a difícil tarefa (ele sofre por isso?) de cuidar de seu rebanho doente, para isso ele usa estratégia para desintoxicar o corpo dos afetos perigosos.
Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena […] Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos vermes que em outros se enterrariam” – Nietzsche, Genealogia da Moral, 1a. parte, §10
É possível viver a doença pelo ângulo da potência? Ao doente, o ressentimento é proibido, cabe a ele desviar por baixo, quando está fraco, desviar o olhar, quando está ao lado, ou não rebaixar-se, quando está por cima. Sentir a vingança como pequena demais para si, é sintoma de força, “o que é o veneno de uma cobra para um dragão?“. Sim, o filósofo sabe se entregar à dor porque sabe esperar pelo momento certo, sabe que na hora mais vantajosa, algo nele agirá. O filósofo encara a realidade e aguarda as condições propícias como o tigre olha fixamente sua presa.
De tais abismos, de tal severa enfermidade, também da enfermidade da grave suspeita voltamos renascidos, de pele mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria, com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais risonhos, com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis e cem vezes mais refinados do que jamais fôramos antes” – Nietzsche, Gaia Ciência, prólogo §4
Não sucumbir à tentação de vingança ou à sede de consumação completa. A doença é o casulo de onde algo de mais forte emerge ao fim do período de metamorfose. Não podemos esquecer, o filósofo do martelo também ensina a leveza do amor fati. Nietzsche é um lutador, ele se utiliza de estratégias de guerra para enfrentar esta que é a maior epidemia de seu tempo: o niilismo. O ressentimento, e não a doença, é nosso inimigo neste campo de batalha. O filósofo estuda seu adversário, faz experimentos, procura entender sua lógica, sem render-se, sem capitular, sem deixar-se seduzir.
Viver – isto significa, para nos, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo” – Nietzsche, Gaia Ciência, prólogo §3