O discurso de que a maternidade transforma as mulheres em seres superiores, além de não corresponder à realidade, também é uma armadilha bastante perigosa.
O tempo inteiro eu leio e ouço que a maternidade nos transforma para melhor. Escuto que depois de nos tornamos mães, somos invariavelmente mais evoluídas, mais fortes, mais resilientes e uma versão turbo ainda mais incrível de nós mesmas. E mais: essa transformação toda acontece quase que por milagre, como se fosse uma indenização da Mãe Natureza para compensar todas as mazelas que o maternar envolve.
“Tá aqui ó: você vai se foder um pouquinho; possivelmente engordar e nunca mais voltar ao seu corpo; certamente vai se descontrolar hormonalmente e também vai lidar com a privação de sono; as varizes e os enjoos podem ou não aparecerem; vai ter algumas crises de choro; vai perder empregos e oportunidades de trabalhos; possivelmente vai se sentir a pessoa mais solitária do mundo, maaaaaaaaaaaaas, como eu sou sua parça, apesar disso tudo você vai se transformar em um ser humano muito topzera evoluído nível máster, ok?! Brigada, de nada!”
“Mas Mãe Natureza, e qual vai ser o benefício?”
“Olha, na prática mesmo, nada demais… Vão dizer aí uma vez por ano que você é muito top, guerreira, fodona, fantástica e iluminada e tudo mais. Provavelmente, vão te dar alguns presentes para a casa ou aqueles cremes vagabundos que você irá acumular todos os anos. Mas hein, não esqueça: você é uma outra pessoa agora! Outro nível… Outra vibe! Você tá no clube das mães gatinhas. Amor incondicional, força de leão, move montanhas e a porra toda. Cê acha que é pouco, é, bonita? Você devia era agradecer! Tem um monte de mulher por aí querendo essa oportunidade, viu?! E tem mais, todas as coisas ruins que eu falei ali acima serão compensadas pelo sorriso do seu filho (pausa para suspiros apaixonados)…”
“Ah ta, então tá bom! Obrigada!”
Gente, pelo amor da deusa, cerca de 91% das mulheres adultas no Brasil são mães. Se todas elas se transformaram em seres humanos topzera, evoluídos, nível blaster, como cargas d’água foi que chegamos a este nível de retrocesso (#foratemer) enquanto sociedade? Como é possível que tenhamos Bolsonaro como possibilidade para a Presidência e as pessoas estejam até hoje discutindo sobre bolacha, biscoito e #uvapassa nas redes sociais? Alguém me explica, por favor?
Pode parecer cômico, mas na verdade é bem trágico.
Com a chegada do Dia das Mães e a multiplicação das odes à maternidade pipocando no meu computador o dia inteiro, eu me peguei pensando em como essa história de transformação é o discurso mais mentiroso e conivente com um sistema de exploração de mulheres que eu já ouvi.
Até as pessoas e os textos que se propõem a falar das dores e também a desromantizar a maternidade acabam concluindo que tudo isso contribui para essa transformação das mulheres em pessoas mais fortes e melhores.
Eu não me sinto uma pessoa essencialmente melhor por ser mãe. Eu me sinto insegura, desanimada, cansada, e só. Eu me sinto sobrecarregada mentalmente e muitas vezes refém da minha própria vida. E, trabalhando com mulheres e desenvolvimento humano diariamente, posso afirmar que a maioria delas se sente assim também. A diferença é que elas não contam para ninguém. Às vezes, nem tem coragem de assumir para elas mesmas.
Acontece que a repetição desse discurso de que a maternidade transforma as mulheres em seres superiores, além de não corresponder à realidade, também é uma armadilha bastante perigosa.
Primeiro, porque justifica o isolamento de mulheres que são mães, colocando a transformação pessoal como um prêmio automático por todas as dificuldades, acúmulo de funções, injustiças e desigualdades que nos acometem.
Segundo, porque leva muitas mulheres a se acomodarem na ilusão de que a transformação vem de graça. E ela não vem. Quando a gente se dá conta disso, sabe o que vem no lugar? As nossas boas e velhas conhecidas: A FRUSTRAÇÃO e BAIXA AUTOESTIMA.
A maternidade, assim como outras experiências em que nos deparamos com um profundo mergulho em nós mesmas, é uma OPORTUNIDADE incrível de autoconhecimento e desenvolvimento de resiliência. Mas ela é só isso mesmo: uma oportunidade.
E essa oportunidade pode ou não ser aproveitada para que o processo de transformação (que, diga-se de passagem, é e sempre será contínuo e sem fim) aconteça.
Ser mãe faz de mim uma pessoa melhor, assim como as minhas expriências de abuso sofridas na infância também me fizeram uma pessoa melhor. O que me faz evoluir é a RESPOSTA que eu dou para o que acontece na minha vida, e não o evento em si que determina o meu autodesenvolvimento. Saber disso é incrivelmente libertador.
Ter essa noção nos permite compreender que sempre há tempo para iniciar este processo de autoconhecimento. Cada experiência e cada vivência que temos é de fato única e é também um potencial de transformação. Tudo isso é muito diferente de validar a opressão e o isolamento materno com um discurso de uma suposta evolução mística gratuita.
Acreditar que o simples fato de nos tornarmos mães nos coloca em um outro patamar de pessoa é também cruel com quem não escolheu ou não teve a escolha de viver essa experiência, ou ainda, com quem não fez (ou não gostaria de fazer) dessa a experiência a mais transformadora da sua vida.
Esse tipo de pensamento menospreza o esforço que as pessoas fazem ao encarar o autoconhecimento. Com esse discurso, algo que é muito difícil, apesar de ser extremamente recompensador, parece fácil e automático.
Minha mensagem para este Dia das Mães é que a gente questione o lugar em que estamos sendo colocadas. A maternidade, enquanto experiência coletiva, precisa ser repensada para sair desse lugar de sofrimento e transformação transcendental. Ao mesmo tempo em que, como experiência individual, precisamos nos perguntar: o que eu estou fazendo com essa oportunidade de autoconhecimento e transformação que a vida me apresentou?