Lá estava eu sentada em uma das raríssimas aulas de meditação ou yoga que consigo ir, infelizmente… Guiando a meditação, a professora me colocou frente a frente comigo aos sete anos de idade e me vi pendurada nos andaimes de construção da casa da minha avó, com mãos e pés entrelaçados, enxergando a vida de ponta cabeça. Queria ser veterinária. Queria ser grande. Ter peitos, filhos, usar salto, ter um carro conversível.
“Agora, explique a essa menina que você foi, o que foi que aconteceu com você. Porque você não é hoje a pessoa que ela sonhou ser lá naquela época”.
Chorei. Copiosamente, chorei, chorei e chorei. Queria implorar para a criança que eu fui, para que me perdoasse por tudo o que fiz com nós duas depois, até estar naquela sala sentada no chão, chorando, perdida em mim, tentando me encontrar…
Chorei todo o choro que eu guardei em mim e se eu não começasse imediatamente um exercício de respiração, senti que poderia chorar até o fim dos meus dias.
Não soube o que explicar para aquela menina… Talvez eu quisesse lhe dizer que ela sonhava demais e não fazia a menor ideia de como era a realidade. Mas tive medo de que ela me olhasse fixamente nos olhos e de dedo em riste me dissesse: – Foi você quem mudou a minha realidade!
Não consegui dizer nada. Silenciosamente, enquanto as lágrimas me esvaziavam, eu meneava a cabeça como quem diz “não, não, não” e chorando, só sabia lhe pedir perdão. “Desculpa… Perdão, perdão, perdão…” E chorei.
Chorei porque eu a transformei em dor. Ela, que tinha sonhos simples e grandiosos, que via a vida com a simplicidade das crianças de sete anos, com capacidade de amor e perdão, de compreensão… Agora era uma mulher adulta se equilibrando na corda bamba da vida, entre acertos e erros, tentando freneticamente consertar tudo o que talvez ainda pudesse ser consertado e quem sabe, mudar um pouco a realidade, ou o futuro… Quem sabe?
Chorei porque ela conhecia muito pouco da maldade, dos sentimentos ruins e negativos que nos atormentam e eu insistentemente ensinei tudo isso para ela. A fiz se conformar em desistir dos sonhos e ceder as pressões, as expectativas alheias, em ser o que esperavam que ela fosse e assim, gradativamente, ela desaprendeu a sonhar e se embrenhou num processo industrial de sobrevivência.
Eu a coloquei frente a frente ao espelho e lhe disse que ela não podia ter tudo o que queria, que ela não era tão capaz assim, que a vida não era tão simples e que ela ia se ferir se sonhasse demais. A deixei com medo o bastante para crer que melhor seria usar uma armadura, do que viver livre pelos campos.
Eu a fiz crer que seguir os padrões era o mais apropriado, que abrir mão de coisas importantes era um modo de sobrevivência e que na vida uns precisam sofrer para outros sorrirem, como diz a canção.
E ela confiou em mim… Todos os dias eu a via na frente do espelho, desacreditando de si e dos seus sonhos e vivendo com a mediocridade que lhe era imposta, porque eu disse para ela que melhor seria se agarrar nisso do que não ter nada. E ela acreditou em mim, e desacreditou de si mesma. Agora, ela é uma mulher magoada, frustrada, ainda vivendo na mediocridade que lhe é imposta, com medo de ousar e sonhar e sentindo-se culpada toda vez que rompe com algum paradigma.
Agora, eu não posso mais transformá-la… Posso? Posso fazer mais do que lhe pedir repetidamente, perdão, perdão e perdão?
Eu nunca havia me encontrado com ela, desde então… O tempo passou e fomos cuidar de nossas vidas e nunca mais nos vimos. Achei que ela tinha mágoa de mim e me afastei dela… Mas naquele dia, naquela sala, ali sentada no chão entre um soluço e outro, ela sentou na minha frente e segurou minhas mãos e com um rostinho sardento e magrelo, sorriu e me disse:
– Você mudou a minha vida… E roubou de mim anos que eu nunca mais terei. Mas ao contrário de você, nunca deixei de acreditar. Nunca deixei de amar ou ver o mundo como via antes. E toda vez que você conseguiu voltar da escuridão onde estava, eu estava ali te chamando: – “Vem”! – Ao contrário de você, eu nunca fui embora… E mesmo apesar de todo o esforço que você tenha feito, nunca deixei de acreditar em mim. No momento em que você decidir que sim, eu volto a existir… Só depende de você.
E ela continuou… – Volte a subir em árvores. Cante no chuveiro. Coma paçoquinha, brinque de amarelinha, gargalhe alto. Quem te disse que você não pode fazer isso? Lembra quando estava ruim em um lugar e eu dizia sem cerimônia “aqui está chato, quero ir embora”. Você agora é adulta, levante e vá embora! Lembra quando eu não me sentia bem perto de alguém e me afastava? Quando alguém não era bom pra mim, eu apenas não ficava perto dessa pessoa. Por que você fica, mesmo sabendo que não deve?
Assim, ela ficou comigo horas, dias, terminada a sessão de meditação e nas semanas seguintes, lá estava ela sendo tipicamente uma menina de sete anos, falando sem parar, me perseguindo por todos os cantos…
Então eu olhei no espelho e vi a imagem refletida da minha filha de sete anos fazendo um rabo mal feito nos cabelos, vivendo o drama de ter brigado com uma coleguinha de escola, com todas as características da menina que eu era nessa idade. A menina que ainda vivia em mim e que talvez não pudesse mais existir como alguém de sete anos, mas que ainda poderia dar leveza a minha vida e me devolver um pouco do viço que perdi nos anos que deixei passar.
Agora, eu tinha outra menina de sete anos, bem ali na minha frente, se espelhando em mim, nas minhas crenças e no modo como eu enxergava e vivia a minha vida, acreditando nos sonhos que eu a ensinasse a acreditar, no potencial que eu a ensinasse a ter ou descrer. Era a vez da minha menina e eu tinha o dever de resgatar a menina em mim, para não deixar se perder, a minha menina…
Me dei conta da coincidência dos anos, das meninas de sete anos se olhando no espelho. Achei que a vida estava querendo me dizer alguma coisa… Que nada precisa ser tão complicado como a gente faz ser. Que a vida pode ter a leveza da criança que fomos um dia, antes de aprendermos a crer que a dor faz parte da vida, como se não merecêssemos o amor, como se tivéssemos que nos conformar, aceitar o inaceitável, o mediano, o que machuca e dói.
Talvez a vida estivesse tentando me dizer algo… Ou a menina em mim… Ou a minha menina… Talvez eu precisasse prestar mais atenção aos sinais…