Ter felicidade no trabalho: ingenuidade ou realidade?
Há ainda um grande preconceito quando se fala sobre felicidade no trabalho, sobre “fazer o que se gosta pra ganhar dinheiro”. Como se houvesse algo de totalmente inconsequente e utópico nessas afirmações. Pendi pra ambos os lados: primeiro achei que era um discurso de mimados irresponsáveis com um tolo idealismo; depois passei a crer como uma verdade absoluta.
Hoje, depois de um processo de transição de carreira que durou anos, entendi que, na realidade, há um matiz nessa gama de cores. De fato, precisamos suprir nossas necessidades básicas. Alimentar-nos, ter um teto sobre nossas cabeças, garantir o existencial de uma vida digna, coisa que, infelizmente, grande parte da população não tem resguardada. Isso é o núcleo vital, questão de sobrevivência. Não há espaço pra pensar em qualquer outra coisa quando não se tem garantida uma existência em condições dignas.
Ou seja: de fato, o discurso não é tão simples quanto o que a frase “faça o que você ama” aparenta passar. Mas excetuando essa situação específica, o que os desconfiados da felicidade no trabalho não entendem é que há um caminho do meio entre se massacrar e se iludir.
Hoje percebo que “buscar uma vida com propósito” (o que engloba, mas não se limita, ao assunto profissional), não é ser irresponsável. Pelo contrário: é uma grande responsabilidade consigo mesmo e com sua própria felicidade.
A felicidade no trabalho e o propósito
Todos nós, dentro dessa singularidade rica que faz da humanidade tão interessante, temos nossas diversas aptidões, talentos, dons, inclinações, habilidades inatas. E cada um também tem um conjunto de valores, de elementos essenciais que nos movem, que dão sentido à vida e norteiam nosso existir (e tudo isso é muito pessoal).
Trabalhar com propósito é exercer uma atividade que permita o desenvolvimento e evolução das nossas aptidões e talentos de forma compatível com nossos valores, estimulados por uma dose adequada e saudável de desafios (e não esforços que resultem numa “mortificação diária do eu”). E sim, dá pra encontrar mais de uma atividade que respeite essas premissas e ainda assim retornem financeiramente.
Nesse momento me vem a noção de “FLOW” do Mihaly Csikszentmihalyi, aquele estado de transcendência, de imersão total no que estamos fazemos, perdendo até a noção de tempo, de espaço e de si: ele não surge de uma “vida fácil” em que você utiliza suas habilidades já totalmente dominadas pra fazer coisas sem empenho. Buscar o flow não é fugir do sofrimento, mas um equilíbrio entre suas habilidades e os obstáculos que você tem a vencer, saber que está evoluindo e lapidando suas potencialidades e talentos, por meio do enfrentamento de desafios proporcionais.
Trabalhar é sofrer?
A noção de que “trabalhar é sofrer” (como se permanecer num trabalho que viola nossa essência nos dignificasse e exorcizasse o dinheiro ganho) tem um tanto desse imaginário cristão que impinge a noção da culpa, da penitência, do sacrifício como algo nobre e purificador. Por outro lado, há também um interesse muito grande, economicamente falando, de que a grande maioria simplesmente cale a boca (e os sonhos) e faça o que deve ser feito, para movimentar essa grande máquina de gerar dinheiro (para poucos), sem questionar se aquilo tudo faz sentido (para a natureza, para a sociedade, para sua comunidade ou mesmo para a sua vida).
Não posso e não quero crer que o trabalho se resume a suportar, resignado, uma verdadeira agressão à nossa essência.
Quem vive alinhado com seu propósito tem uma serenidade mesmo nos momentos de dificuldades. As batalhas e sacrifícios existem, mas não nos agridem, porque se sabe exatamente o porquê de estar naquele lugar, daquela forma, fazendo o que se está fazendo. Não há um piloto automático, um robô sem consciência, que age baseado no que vem do mundo externo e confortavelmente culpa esse mesmo mundo pela sua infelicidade e seus problemas. Há uma presença plena em cada prática e atividade do seu dia, há uma intencionalidade lúcida.
Isso torna a trajetória um processo que se curte enquanto se caminha, e não simplesmente uma espera do prêmio de alegria e liberdade no fim do percurso. Isso não é viver. Isso é tocar os dias como quem tenta não deixar morrer a alma até o momento do ápice, da iluminação, em que todo o sacrifício será recompensado no final.
É cliché mas é verdade: viver no futuro não traz alegria, traz ansiedade, traz sofrimento. Até porque o futuro não existe (e sabe-se lá se existirá). Esperar pra ser feliz amanhã é colocar nas mãos duvidosas do futuro um bem tão precioso.
A vida tem que ser uma batalha em que a gente acredita. Querer trazer propósito no trabalho não é ter uma visão ingênua de quem só quer ter vantagens e lados positivos na profissão. É estar ciente dos percalços todos, mas senti-los mais leves porque se crê nos caminhos escolhidos. É uma paz de quem já está feliz por viver em sintonia com o que é verdadeiro e, portanto, o resultado em si é mera consequência. Querer ter felicidade no trabalho é uma das grandes provas de cuidado consigo mesmo.