As pessoas se machucam, se destroem, causam feridas e mágoas profundas umas nas outras, simplesmente porque não conseguem se vincular e se desvincular com o mínimo de respeito e cuidado.
Na música “Amuleto”, Tiê pedia para João cuidar de seu coração. Pedia para ele pendurá-la em seu pescoço feito um amuleto para que ela não se arrependesse de um dia tê-lo amado. A música é linda, uma das minhas preferidas, mas é claro que João não conseguiria sanar todas as dores e necessidades da mocinha. Porém, João poderia ser cuidadoso. João poderia ser gentil com o fim. João poderia levar em consideração o afeto que um dia sentiu, e não sair por aí expondo em praça pública a rapidez com que superou, e mais ainda, a pressa com que a fila andou.
A questão que se instala é como lidamos com a dor do outro quando uma relação termina e só a gente quis que ela terminasse. A gente não pode prever quanto tempo o outro ainda vai carregar a gente dentro dele, e se algum dia existiu amor, ou pelo menos consideração, os vínculos ainda existem, e não é porque vivemos tempos líquidos que podemos sair desprezando, torcendo o nariz, tratando como um incômodo alguém que já fez parte de nossas vidas e de alguma forma compartilhou nossa história.
Ana sabia que não devia, mas tinha acabado de sair do show do Gil, e pareceu tão certo depois de ouvir “Drão” ligar para João que não achou que pudesse se arrepender depois. Mesmo após Catarina adverti-la sobre os riscos de combinar night x bebida x celular = ressaca moral no dia seguinte, ainda assim achou que valeria a pena matar aquela saudade. Tinham sido namorados por dois anos, e mesmo tendo rompido há cerca de um mês, uma parte dela ainda acreditava que haveria consideração, principalmente quando ela contasse que tinha ouvido “Drão”. Num impulso, clicou no contato conhecido. Dois toques, Ana, coração na mão, arriscou um rápido: “Oi João!”. Ele, desperto, perguntou se era a “Fer”. Ana, um misto de curiosidade, surpresa e indignação (quem seria “Fer”?) se identificou: “Sou eu, a Ana!” e João, sem disfarçar a consternação, resmungou: “Ah… é você? Affffffffff” , claramente torcendo o nariz. Ana emudeceu, corou, desligou. E no ombro de Catarina confessou: Sentir o desprezo dele havia doído muito mais que ser confundida com “Fer”. Ela sabia, a fila andava, os ciclos se fechavam, a vida continuava. Mas aquele “Ah… é você? Affffffff” era claramente uma aversão, e por isso ecoaria em seu coração muito mais tempo, como uma lembrança ruim, “um arrependimento por um dia ter te amado, João”. Talvez faltasse a João a gentileza do fim. A capacidade de ser tolerante com a dor do outro quando esse outro já foi tão importante pra nós.
Vivemos uma época de vínculos frágeis, em que uma relação só é válida se tem algo bom a oferecer. O tempo urge, a fila anda, e o que passou, passou. Desapegar é a palavra da vez, e esquecer também. De repente olhar para trás ficou obsoleto, e seguir declamando “não espere gratidão nem perfeição” é vanguardista e contemporâneo.
Fechar ciclos é necessário, e esquecer algumas pessoas, também. Porém, é preciso respeito e cuidado quando desejamos afrouxar os laços com alguém. É preciso respeitar o tempo da dor, da assimilação do fim, e ser gentil com o coração do outro, principalmente quando esse outro já esteve firmemente atado a nós.
A gente se arrepende de um dia ter amado algumas pessoas. Não pelo que elas foram durante a relação, mas pelo que se tornaram depois que a relação acabou.
Não sabemos o que esperar das relações, e muito menos dos términos. As pessoas se machucam, se destroem, causam feridas e mágoas profundas umas nas outras, simplesmente porque não conseguem se vincular e se desvincular com o mínimo de respeito e cuidado. Falta coragem e disposição para encarar o que é essencial e tem valor. Falta nobreza para suportar a dor do outro, ser tolerante com aquilo que não é perfeito, e tratar com humanidade as questões de quem precisa se desligar de nós contra a própria vontade.
A fila tem andado depressa e estamos impacientes. Consumimos e descartamos relações, visando apenas as satisfações que podemos obter das pessoas. Tenho visto isso acontecer em relações familiares, de amizade e amorosas. Sem o menor cuidado no “descarte”, objetificamos as pessoas e depois, sem a menor cerimônia ou respeito, rasgamos a folha e partimos para a próxima página. Falta memória e gratidão.
Mas João era jovem. Com a maturidade, aprendeu que uma relação pode acabar dignamente, com consideração e apreço pelo que foi vivido. Aprendeu que mesmo que as relações sejam passageiras, é importante dar um desfecho aceitável, com respeito e delicadeza. Ele compreendeu que é nobre ser gentil mesmo quando se almeja desvincular-se de alguém, e que a vida se encarregará de nos tratar da mesma forma que tratamos os outros. Que a importância de alguém muitas vezes não é sentida no momento em que nos desligamos dela, mas sim lá na frente, quando o tempo e a distância trouxerem entendimento. E, às vezes, arrependimento…