“Olhos nos olhos, quero ver o que você diz. Quero ver como suporta me ver tão feliz…” (Chico Buarque)
Quando chegar o momento certo, você acordará e seu primeiro pensamento não será ele – surpreendentemente, não será ele até o fim do dia, pelo resto dos seus dias. Seus olhos não acordarão inchados e não terá o ímpeto de abrir a gaveta do criado-mudo para olhar a foto dele. Em seguida, pela primeira vez depois de muito tempo, você conseguirá sentir o calor do sol sobre sua pele – prestará atenção em si mesma.
Ao sair da cama, você fará questão de colocar primeiramente o pé direito no chão e, ensaiando uma coreografia, irá se dirigir ao banheiro cantarolando uma música antiga, não sem antes parar em frente ao espelho, do qual tanto fugira nos últimos tempos. Segura de si, voltará a se achar bonita, a gostar do reflexo que vê – terá então retomado a jornada ao encontro de si mesma, de quem havia se perdido.
Em seguida, você vai se sentar à mesa do café e olhará sorrindo nos olhos de sua mãe, que, espantada, constatará que a filha, daquela vez, tinha realmente acordado e saído inteira da cama. Conversarão sobre banalidades e até falarão da vida alheia, maldosamente, rindo juntas, com cumplicidade sincera. Apesar do nó na garganta, sua mãe será forte o bastante para não deixar transbordar em lágrimas toda a felicidade que mal conseguirá conter dentro de si.
Chegando ao trabalho, você sustentará o olhar, cumprimentará os colegas com voz viva e eles poderão enfim sentir sua presença. O tempo não se arrastará, suas tarefas não a chatearão e conseguirá prender a atenção ao que é útil. Você voltará a ser gentil, a perceber-se como parte de um todo, até mesmo rirá quando derramar café na calça nova. À hora do almoço, sentirá fome de fato, quererá comida de verdade e sentirá os sabores dos alimentos, como há muito já esquecera.
À tarde, voltando para casa, olhará à sua volta, no metrô, e poderá perceber os olhares de outros homens, sentindo o calor subindo-lhe as faces ruborizadas. Não se lembrará dos fones de ouvido e redescobrirá os sons da vida ao redor, sentindo-se parte daquilo tudo. Lá fora e cá dentro de si, o mundo urgirá – as cores das roupas, do céu e dos outdoors como que se lhe ofuscavam a vista até então. Seus sentidos, dormentes há tempos, aguçarão novas compreensões de mundo. Você voltará a aprender.
No fim de tarde, porque terá voltado a fazer parte do mundo, será chamada pelas colegas para uma cervejinha e, sem hesitar, dirá sim – um sim a que vinha prontamente se negando. Você se divertirá, beberá, inteirando-se da vida sem ele, sem a sombra dele, sem ao menos mencioná-lo. Espontaneamente, conseguirá saber da vida que corre fora de si, sendo capaz de ouvir e de ver o outro claramente, flertando sorrateiramente e se esquecendo de se esquecer das amigas, daqueles que a amam de forma transparente.
Ao anoitecer, enquanto toma um banho demorado, você se tocará e se redescobrirá sentindo prazer sem ter que pensar nele, sem dele precisar – dele nada se fará presente naquele íntimo e libertador instante de gozo. Assistirá à novela das oito, navegará pela internet, rirá com os memes ridículos, chorará com os vídeos apelativos, ficará revoltada com os posts políticos. Aceitará vários convites e trocará mensagens com novos e antigos homens, pois então já será alguém que voltou ao mundo, uma mulher digna de ser cortejada e desejada. Mesmo sem se dar conta, você estará pronta para amar de novo.
À noite, ao se deitar, você se sentirá confortável como nunca e o sono não mais lhe escapará. Rapidamente irá adormecer, um sono renovador, que lhe trará um amanhecer cheio de sonhos e de esperanças, porque de fato você nunca foi merecedora das punições com que afligia a si própria. Ali deitada, você estará inteira, plena, bastando-se por si só, como tinha de ser. E então você já terá se libertado dele e passará a se entregar às surpresas que a vida lhe tem reservado. Assim, quantas vezes forem necessárias, voltará a se apaixonar, a encontrar o homem de sua vida, para viverem felizes no tempo certo que o amor sempre tem, afinal, somos inesgotáveis em nossa capacidade de nos reconstruirmos, enquanto vida houver.
Acredite: você se esquecerá de se lembrar dele, para sempre…
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