Conhecimento

As emoções e o coração

Dr. Dráuzio Varella entrevista Dr.Marco Aurélio Dias, Autor do livro “Quem ama não adoece”.

Parte I

CANSAÇO OU ESTRESSE?

Às vezes, o indivíduo chega em casa depois de um dia de trabalho pesado, desaba sobre o sofá e geme –“Estou estressado”-, mas tem a cabeça leve e sonha com um futuro mais tranquilo e menos estafante. Isso não é estresse, é cansaço que se vence com algumas horas de repouso e de sono. No entanto, se as preocupações com a promissória no banco, o filho que não se acerta na vida, o risco de perder o emprego, os desencontros afetivos e a falta de perspectivas não o abandonam, em pouco tempo estará dominado por uma carga prejudicial de estresse.
Evolutivamente, o homem não foi preparado para suportar o grau de tensão contínua e constante a que está exposto todos os dias. Ao deparar-se com a fera ameaçadora, o homem primitivo matava-a ou fugia. De volta à caverna, relaxava e recompunha o equilíbrio orgânico e emocional indispensável para sua sobrevivência. Hoje, o direito a essa pausa revigorante desapareceu da vida das pessoas. Mergulhadas nos compromissos e problemas, elas nem se dão conta de quanto corpo reclama dessa agressão permanente.
Recomendar mudanças no estilo de vida pode parecer utopia. No entanto, se esse processo não for interrompido, os males causados à saúde e à qualidade de vida podem tornar-se irreversíveis.

ESTRESSE

Drauzio – Através de que mecanismos as emoções exercem influência sobre o corpo?

Marco Aurélio Dias – A influência das emoções sobre o corpo manifesta-se por vários caminhos. Vamos começar pelo estresse e suas consequências na vida do homem contemporâneo .
Estresse é o estado de tensão gerado no interior do organismo dos animais mamíferos, entre eles o homem, diante de situação boa ou ruim que ameace perturbar seu equilíbrio interno. Embora usualmente o classifiquem como nocivo, todos necessitamos de uma cota de estresse para enfrentar os acontecimentos do dia a dia.
O estresse constitui problema, quando o estado de tensão interior diante da perspectiva de situações ameaçadoras torna-se permanente, crônico, pois cada vez que nosso psiquismo percebe o perigo, envia ordens ao sistema endócrino e as glândulas suprarrenais liberam substâncias na corrente sanguínea, que preparam o organismo para um possível combate. Esse mecanismo é fisiológico e natural.

MECANISMO DO ESTRESSE

Drauzio – Pode-se afirmar, então, que sem estresse o homem não teria sobrevivido?

Marco Aurélio Dias – Nem o homem, nem qualquer outro animal. No entanto, temos de comparar o que acontecia nos tempos pré-históricos, quando o comportamento dos homens e dos outros animais era semelhante, com aquele que ocorre atualmente. Costumo dizer que o inimigo mudou muito, de exterior passou a interior, e que o mecanismo acionado para enfrentar as ameaças tem um componente subjetivo maior do que a realidade objetivamente representa.
Há milhares de anos, quando o homem primitivo saía da caverna e topava com um tigre faminto, a ameaça era real, concreta. Hoje, ao sair de casa apressado para um compromisso importante, se não encontra as chaves do carro, o mecanismo físico desencadeado é exatamente o mesmo, embora seja desproporcional ao estímulo.
Ora, o que é nocivo no estresse? É a perpetuação desse sistema de alarme, não as ocasiões agudas de raiva ou de medo que, muitas vezes, se resolvem por si mesmas. Prejudicial é o indivíduo permanentemente tenso, ansioso, angustiado, pronto para uma batalha que nunca se concretiza. Isso desgasta as artérias, faz subir a pressão arterial, compromete o coração e responde por longa série de outras doenças.

Drauzio – O homem que saía da caverna e dava de cara com o tigre, era obrigado a tomar uma atitude: ou voltava para a caverna, ou enfrentava o tigre, ou corria feito louco. Hoje, quando não encontra a chave do carro e está atrasado, fica nervoso, mas não toma atitude alguma que ajude a descarregar seu estresse. Entretanto, convenhamos, seu nervosismo há de ser infinitamente menor que o do homem pré-histórico diante do tigre ameaçador. Como se explica esse raciocínio?

Marco Aurélio Dias – Quando o psiquismo do homem percebe uma ameaça a seu equilíbrio que, no entender do organismo, põe em risco sua vida, desencadeia um sistema de alarme. Suponha um gato encurralado num canto por um cão. É certo que seu psiquismo reconhece o risco e, em questão de segundos, automaticamente, por ordem do cérebro, substâncias chamadas de catecolaminas (a mais conhecida delas é a adrenalina) são lançadas na corrente sanguínea para preparar o organismo para enfrentar o perigo.
Como reage o gato? Seus olhos ficam maiores e as pupilas mais dilatadas para que enxergue melhor o inimigo. Seus pelos eriçam-se para que seu aspecto torne-se mais assustador. O coração bate mais rápido e mais forte, a pressão arterial sobe para que haja energia disponível para a luta ou para a fuga. O sangue resultante do aumento da frequência cardíaca será desviado da região central do corpo para as extremidades, para as patas do animal, porque o organismo sabe o quanto dependerá delas naquele momento. Os esfíncteres (pequenos anéis musculares que regulam a passagem do alimento do esôfago para o estômago, ou a saída das fezes e da urina) serão liberados, primeiro para que o odor da secreção assuste o inimigo e, depois, para deixar o animal mais leve durante o esforço físico a que será submetido.
Diante de situações de estresse, o mecanismo físico e bioquímico do homem é idêntico ao do gato. Por isso, a gente se arrepia quando leva um susto ou empalidece de raiva ou de medo. Diante do perigo, nosso coração dispara e a pressão arterial sobe. Há pessoas que vomitam ou têm vontade de urinar, quando sofrem o impacto de um desgosto. Talvez parta daí a antiga expressão “borrou-se de medo” que se aplica a esses casos .
É importante insistir, porém, que existem enormes diferenças entre nossa reação de estresse e a do animal. A primeira é o bloqueio da reação. O gato investe contra o cão ou, o mais provável, foge dele. De qualquer forma, sua musculatura vai ser ativada. O homem permanece estático. A segunda é a capacidade de relaxar. Livre do enfrentamento com o cão, o gato passeia pelos telhados ou espreguiça-se ao sol. O homem continua tenso.

Por isso, defendo que se faz necessário investir na reeducação interior. Para exemplificar, vejamos o que habitualmente ocorre num congestionamento de trânsito. Muitas pessoas assumem atitudes irracionais. Metem a mão na buzina diante de um sinal mecânico que não se abala com a impaciência, pressionam os outros e a si mesmas por alguns metros de asfalto à frente ou uns segundos de vantagem. Expõem-se a acidentes, quando a lógica aconselharia que se distraíssem ouvindo música ou o noticiário, observassem as pessoas ao redor ou reavaliassem seus valores de vida. Se assim agissem, sem dúvida, seu prejuízo seria menor. Diante disso, cabe a cada um decidir como deve reagir à pressão externa.
Não há como negar a insegurança das grandes cidades, as incertezas econômicas, a ameaça de desemprego, a pressão de consumo. As dificuldades existem, mas é o modo de encará-las que pode resultar em dose maior ou menor do indesejável estresse.

PAPEL DO ESTRESSE NOS ATAQUES CARDÍACOS

Drauzio – Ninguém discute que fatores como diabetes, cigarro, vida sedentária, colesterol elevado, influem na ocorrência dos ataques cardíacos. De acordo com sua longa experiência clínica, que força têm as emoções nessa patologia?

Marco Aurélio Dias – Acredito que desempenham papel preponderante, embora nos tratados de medicina o estresse apareça como fator secundário, provavelmente porque estudos epidemiológicos não conseguem identificá-lo nem quantificá-lo. Pode-se medir o valor do colesterol, a pressão arterial e a dosagem de açúcar no sangue, ou detectar uma alteração no eletrocardiograma. Como medir a alegria ou a tristeza de alguém, como quantificar sua emoção?
Na minha opinião, se considerarmos o sentido amplo do conceito e nele englobarmos sentimentos como intranquilidade interior, sofrimento emocional, infelicidade, o estresse é o principal fator de risco para as doenças do coração. Quem está tenso volta a fumar, tem menos ânimo para as atividades físicas, come mais para compensar a ansiedade, fica obeso e eleva o colesterol. Além disso, a pressão alta tem clara vinculação com a intranquilidade e a agressividade contida que se volta contra a própria pessoa.

Drauzio – Depois de tanta experiência acumulada, quando alguém chega para uma avaliação cardiológica, você consegue quantificar, pelo menos grosseiramente, seu nível de estresse?

Marco Aurélio Dias – Há dois tipos de pessoas: as que demonstram, no primeiro contato, seu nível de ansiedade e sofrimento, e as introvertidas, que não se abrem. O tempo e a prática, porém, encarregam-se de fazer aflorar a dor escondida.
Os anos de clínica mostraram-me que existem duas principais fontes de sofrimento: a família e o trabalho. Incluam-se, no trabalho, as dificuldades econômicas. A importância desses componentes, ou melhor dizendo, a importância do sofrimento interior no aparecimento da doença orgânica constitui a essência da medicina psicossomática.

Para melhor avaliação, o primeiro passo é incentivar o paciente a falar bastante a fim de que sua queixa fique bem caracterizada. Em seguida, ele deve ser minuciosamente examinado. Depois, é preciso saber de sua vida, das suas dores e amores, para tentar descobrir o que há por trás dos sintomas e da doença. E sempre existe alguma coisa.
É lógico que as pessoas apresentem diferentes graus de defesa para expor seus dramas pessoais. Talvez por estigma cultural, quem procura o cardiologista não está preparado para abrir a alma. Isso condiz com os consultórios de psiquiatria. Portanto, não é de estranhar que haja certa resistência no início, especialmente nos homens. As mulheres falam de suas emoções e de seus padecimentos com mais facilidade. Os homens, não. Para eles tudo vai bem e o que sentem não pesa.
Há uma estratégia que ajuda a dimensionar a força das emoções. Pergunta-se, numa escala de zero a dez, que nota cada paciente daria para seu nível de felicidade. Em geral, as notas ficam entre 6 e 8. Nunca encontrei alguém que se desse 10. Esse número serve de gancho para identificar o que falta para chegar ao 10. Quando começam a falar, não é raro perceber que as pessoas foram condescendentes em sua avaliação. Não lhes faltaria motivos para uma nota bem mais baixa.
Seria exagero e radicalismo afirmar que a emoção é responsável por todos os males. As doenças são multifatoriais. Características genéticas, ambiente, fatores de risco influem, mas o componente psíquico-emocional tem importância relevante, especialmente na doença coronariana que leva ao infarto e à angina.

COMO EVITAR O ESTRESSE

Drauzio – Já que não podemos evitar os problemas nem resolvê-los todos, qual a melhor maneira de enfrentá-los?

Marco Aurélio Dias – Como já salientamos, certo grau de estresse é inerente ao estar vivo e pode ser provocado por acontecimentos bons ou ruins. Por exemplo, se considerarmos duas importantes fontes de estresse, o casamento e a separação, veremos que, embora antagônicas, ambas são estressantes.
Entretanto, se os efeitos do estresse comprometem a saúde, a qualidade de vida e os momentos felizes, é fundamental encontrar uma saída. Nesse caso, já que as pessoas não podem fugir dele, sugiro algumas dicas para ajudá-las a minorar seus efeitos nocivos.

A entrevista é muito interessante, porém muito extensa, por isso foi dividida em duas partes. As dicas você pode conferir na segunda parte da entrevista que será publicada amanhã.

Resiliência Humana

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