Entre tantas frases marcantes, essa, com certeza, é uma da qual não me esquecerei. O filme “Coringa” é capaz de nos fazer refletir sobre aquilo que, a maior parte do tempo, temos medo de encarar.
Uma obra magnífica. Uma interpretação memorável de Joaquin Phoenix. Saí da sala de cinema mais lúcida em relação a tantas questões atemporais que o personagem Coringa despertou em mim de uma forma muito sensível.
Transtornos mentais sempre foram polêmicos. Por muito tempo, as pessoas chamaram de “loucos” aqueles que sofriam de algum distúrbio psicológico. Infelizmente, até hoje isso está enraizado na sociedade e continuamos chamando indivíduos nessas condições de loucos, seja porque não temos consciência do quão nocivo é o uso da palavra, seja porque ainda cultivamos um preconceito dentro de nós.
Tal comportamento não tem sentido, visto que relatórios da Organização Mundial da Saúde apontam que, mundialmente, o número de casos de depressão aumentou 18%, entre 2005 e 2015. De certa forma, não sabemos lidar com um dos maiores problemas que afeta a própria sociedade.
Coringa, ou Arthur Fleck, sofre de inúmeros transtornos mentais. Ao longo do filme, é possível sentir a paixão que o personagem cultiva pela “arte de rir”, o que se torna irônico conforme ele começa a cometer crimes que causam lágrimas e não risos.
Seu sonho era ser comediante, mas trabalhava como palhaço em lojas, hospitais e outros estabelecimentos.
Várias cenas, inclusive a que abre o filme, mostram Arthur sendo agredido ou maltratado. As pessoas tiram sarro e o consideram esquisito. De fato, ele não tem um comportamento usual em muitos momentos, por exemplo, quando não consegue controlar a própria risada em consequência de seus distúrbios.
As várias cenas que compõem a construção de “Coringa” apresentam um personagem perturbado, deslocado e incomodado com a própria existência. Arthur, no entanto, depara-se o tempo todo com pessoas maldosas e que o agridem verbal e fisicamente. Até mesmo a mulher que ele visita toda semana em consultas médicas de acompanhamento não parece demonstrar real interesse por sua condição.
“Você faz as mesmas perguntas todos os dias. ‘Como vai seu trabalho? Está tendo pensamentos negativos?’ Só o que eu tenho são pensamentos negativos.”
Essa é a fala de Arthur em uma de suas consultas, demonstrando o quanto sente a indiferença da pessoa que, teoricamente, deveria estar preocupada com a sua sanidade mental.
Não há como negar que a sociedade já evoluiu bastante no que diz respeito à aceitação e tratamento de distúrbios psicológicos, mas pare e pense quantas vezes você mesmo já não menosprezou alguém que tinha algum transtorno?
“Ah, esse aí é louco, está lelé da cuca…”, dizemos. E não nos damos conta de como esse comentário pode destruir e moldar a vida de quem sofre de algo sério como uma doença mental.
Em diversas cenas em que Arthur Fleck sofre ofensas verbais ou golpes físicos, ele se questiona: por que as pessoas são assim? Por que são tão rudes o tempo todo? O que há com todo mundo?
O espectador sente a sua dor, o seu desespero nos momentos em que apenas quer ser compreendido. Seja na cena em que é menosprezado por um apresentador na televisão ou quando implora por afeto ao seu pai, vemos um personagem frágil e carente.
Cada episódio de fúria e desgosto que atropela o caminho de Arthur começa a transformá-lo ainda mais, até que ele passa a lidar com a situação de uma forma socialmente inaceitável: por meio da agressão e da morte.
Não estou dizendo que matar é correto em tais circunstâncias, mas fica claro que a sociedade moldou o Coringa. A história construída para o personagem fortalece um contexto em que a sociedade teve o seu peso nas ações de Arthur Fleck.
Praticamente invisível e menosprezado até cometer atos graves, o próprio personagem chega a se questionar: “Durante toda a minha vida, eu nem sabia se eu realmente existia. Mas eu existo. E as pessoas estão começando a perceber.”
Sim. As pessoas o notam e o respeitam quando ele revida, quando cria uma espécie de movimento que boa parcela da cidade apoia. Nesse momento, o Coringa nasce e dá lugar a um indivíduo amargo e rancoroso que, por tanto tempo, passou seus dias em busca de afeto e compreensão.
Uma das cenas mais marcantes é quando o personagem dança em slow motion nas escadas — é o seu momento de glória e reencontro consigo mesmo, quando finalmente assume seu papel como Coringa.
Quando assistimos a um filme do Batman, é automático ficar contra o vilão Coringa, afinal, ele é uma pessoa má, ele mata e se diverte com o sofrimento alheio.
Mas “Coringa” nos proporciona uma nova perspectiva: além de nos fazer refletir sobre uma sociedade incapaz de lidar com o diferente, resgata outro aprendizado importante: como julgamos a parte sem conhecer o todo.
Como é fácil ir contra o Coringa em um filme do Batman, não é mesmo? Isso porque normalmente esse tipo de obra cinematográfica não tem como objetivo se aprofundar na essência do vilão e suas razões para agir de tal forma.
E não é exatamente isso o que fazemos no nosso dia a dia? Julgamos as pessoas sem conhecer a história que carregam. É mais fácil falar mal e criticar do que nos preocupar em entender por que agem de determinada maneira.
Chega a ser assustador, não é mesmo? E digo tudo isso porque saí do cinema com um carinho por Arthur Fleck. A narrativa construída me convenceu das razões de o personagem tomar tais atitudes violentas. Novamente, não digo que matar seja correto, mas há muitos fatores em volta das ações de Arthur.
Coringa não nasceu Coringa, ele se transformou em Coringa com a ajuda da própria sociedade, incapaz de reconhecê-lo e entendê-lo.
Afinal, será que Arthur Fleck teria se tornado Coringa se tivesse sido bem tratado no emprego, no programa de televisão ou pelo seu pai?
Será que a maneira como tratamos as pessoas não afeta diretamente como elas agem e são? É claro que sim.
O próprio personagem diz que a pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você aja como se não a tivesse, ou seja, esperam que você não seja você mesmo para não ter que lidar com a sua natureza. Tudo começa aí: com a incapacidade de aceitar o indivíduo diferente e menosprezá-lo.
E enquanto agirmos dessa forma, continuaremos tendo a nossa parcela de culpa em vários dos atos – criminosos ou não – das pessoas que estão ao nosso redor.
Arthur Fleck anota em seu caderno, enquanto repensa, pela milésima vez quem é, seus atos e como as pessoas ao seu redor agem: “Só espero que minha morte valha mais centavos do que minha vida.”
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