Muitas crianças nascem com a dura tarefa de “fazerem sua mãe feliz”. Desde cedo aprendem a olhar para a mãe que precisa ser compreendida, para a mãe que está cansada, para a mãe que está preocupada com o trabalho, para a mãe que não aguenta criança chorando ou para a mãe infeliz com o casamento… Enquanto isso o filho passa a acreditar que a vida é assim mesmo e que ele deve ser grato e compreensivo pois “tudo” o que sua mãe faz é pensando nele. Mas na verdade ela pensa tanto em si mesma, que é capaz de convencer o próprio filho disso.
O filme “Ponto Zero”, do diretor José Pedro Goulart, retrata perfeitamente o que acontece na vida de filhos que nascem de mães carentes, frustradas e dependentes.
Crianças assim crescem com baixa autoestima, falta de confiança em si mesmas, angustiadas e culpadas, entre outras fragilidades. Elas lutam para acreditar em um amor difícil de ser sentido, pois acabam sendo funcionais, mas não amadas. São úteis e acabam recebendo recompensas por terem cumprido bem seus papéis de boazinhas ou de solucionadoras de problemas. Jamais são vistas pelo que são em essência, apenas pelo bom cumprimento das expectativas maternas.
Muitas vezes durante uma sessão, uma pergunta basta ao paciente: “E para você, quem olhava?”, para que ele se dê conta de seu próprio abandono, e se conscientize que durante anos ele cuidou de sua mãe, ele viu seu sofrimento, ele tentou ajudá-la, mas enquanto isso ele mesmo não foi visto. Desta forma percebe que até hoje existe dentro de si uma criança ferida com olhinhos arregalados a procura de alguém que lhe estenda a mão e a acolha em seu desamparo.
Uma criança, por mais que queira, não tem estrutura para oferecer suporte a um adulto ou para assumir responsabilidades que não lhe cabe. Mas na ânsia de ser vista, qualquer saída serve e para ir ao encontro de um suposto amor, acaba se perdendo de si mesma.
Segue relato de Maja, uma moça de 38 anos, que resolveu buscar ajuda terapêutica após viver anos alienada de si mesma graças a uma mãe que não soube amá-la.
Eu era a jóia na coroa de minha mãe. Ela dizia sempre: pode-se confiar em Maja, ela consegue. Eu realmente consegui, criei-lhe os outros filhos menores para que ela pudesse continuar sua carreira profissional. E ela ficava mais e mais famosa, embora eu nunca a tivesse visto feliz. Quantas noites senti sua falta, os pequenos choravam e eu os consolava, mas eu nunca derramava uma lágrima. Quem precisaria de uma criança chorona? Só poderia receber o “amor” de minha mãe sendo competente, compreensiva, controlada, nunca questionando seus atos nem mostrando quanto sentia sua falta – tudo isso iria cercear sua liberdade, de que tanto necessitava. E ela se viraria contra mim. Naquela época, ninguém podia imaginar o quanto a competente, tranquila e agradável Maja era solitária e sofredora. O que me restava, além de ter orgulho de minha mãe e ajudá-la?
Quanto maior o buraco no coração da mãe, tanto maiores precisariam ser as jóias de sua coroa. Minha mãe precisava dessas jóias, pois toda a sua atividade servia para reprimir algo dentro de si, um desejo talvez, não sei… Talvez ela o tivesse descoberto se tivesse a sorte de ser uma mãe num sentido mais amplo que apenas o biológico. Aparentemente, esforçava-se tanto e tinha tanta responsabilidade. Mas a alegria do amor espontâneo não lhe fora dada.
E como tudo isso se repetiu com Peter! Quantas horas vazias meu filho ficou com empregadas para que eu pudesse cursar a faculdade, o que só serviu para me afastar dele e de mim mesma. Quantas vezes o abandonei e não percebi o que tinha feito, já que eu nunca pude sentir meu próprio abandono? Apenas agora começo a ter noção de como pode ser uma maternidade sem coroa, sem joias, sem auréola.
Muitos pacientes no início da terapia evitam olhar para o seu passado pois tem medo de “sofrer duas vezes” como alguns dizem. No entanto, como disse Alice Miller: “o revivamento e a consciência dos sentimentos da infância não matam, libertam. O que não raro mata é reprimir os sentimentos, cuja experimentação consciente poderia nos revelar a verdade.”
É se reencontrando com a criança ferida que mora dentro de si, que podemos nos tornar seres humanos mais completos. Nesse reencontro nós somos capazes de nos fortalecer e dar a ela aquele abraço que não foi dado. Essa é a verdadeira cura, a que vem de dentro para fora. Não é do outro que devemos esperar, é a nós mesmos que devemos oferecer.
“Sou livre de tudo que sei e escravo de tudo que ignoro.” Spinoza.