Eu detesto encontros armados. De-tes-to! Prefiro acabar sozinha, no porão da casa da minha mãe, criando 23 gatos, do que conhecer o amor da minha vida em um encontro armado. A situação de bosta, o climão estranho, a vergonha no ar… Enfim, tudo compactua para aquele encontro não dar certo.
Sempre que um amigo marca um encontro para outro amigo é assinada uma garantia celestial e imutável de que aquele relacionamento fracassará o quanto antes. E isso se tiverem sorte e o encontro render um relacionamento. Porque na maioria dos casos nem isso acontece.
Parece que por mais que os amigos saibam tudo da gente, eles nunca realmente acertam quem gostaríamos de conhecer.
Quando uma amiga me diz que Fulano é a minha cara, já bate aquele medo de ir conhecer o cara, descobrir que ele é um completo babaca e me acabar, por semanas, em pensamentos de“se é isso o que a minha própria amiga acha que é a minha cara, então ela deve me achar tão babaca quanto!”
Jessica nem teve o trabalho mínimo de peneirar os amigos do date dela. Ou seja, me levou para conhecer o cara mais aleatório possível. É incrível a capacidade dela de ser otimista e achar que esse encontro pode dar minimamente certo para mim.
Para ela vai dar, é claro. Sempre dá. A Jessica gosta de todo mundo. E consequentemente todo mundo gosta dela também. Ela sempre procura a melhor qualidade das pessoas e se apega a ela. Enquanto ignora os defeitos, por mais horrorosos que sejam.
Certa vez estávamos na casa do Paulo, outro amigo nosso, em um grupo grande e conversávamos sobre os horrores do Holocausto, quando Jessica, no meio da conversa sobre quão monstruoso era Hitler, soltou:
– Pelo menos ele gostava de cachorros.
Aquilo foi estranho até mesmo para nós, seus amigos de anos. Ela havia se superado. Conseguiu achar um lado positivo até na pessoa mais negativa que já pisou na terra.
Esse é o tipo de façanha que só a Jessica consegue. Às vezes não sei se ela é a pessoa mais empática do mundo ou a menos.
Na verdade, suspeito que seja mais simples do que isso. Ela apenas não consegue sentir ódio.
E isso é indiscutivelmente uma incrível qualidade. Quase um super poder – que aliás eu adoraria ter.
Quando chegamos no local escolhido pela Jessica, demorei alguns minutos para entender se aquilo era um restaurante, um pub ou um bar e uma hora cheguei a conclusão de que era um pouco de tudo. Servia comida – mexicana, uma das minhas favoritas – mas tinha também música alta, garçons jovens e bonitos, e público igualmente jovem e bonito bebendo lindos drinks coloridos.
Ótimo. Eu poderia me acabar de comer sem ter que conversar com o amigo do date da Jessica. Ninguém puxa assunto com quem está de boca cheia. Então a minha tática era ficar de boca cheia durante todo o encontro. Não tinha como falhar. Eu sou uma gênia!
Eles já nos esperavam na mesa. Jessica sentou ao lado do date dela, Marcelo, um rapaz de estatura mediana, cabelo castanho claro, covinhas na bochecha e com os dois dentes dianteiros separados, característica que dava um diferencial charmoso a ele.
Percebi na hora que ela tinha gostado dele logo de cara. Quando a Jessica gosta de um cara ela joga o enorme cabelo loiro para um lado e para outro incessantemente. É uma mania involuntária dela. Qualquer dia desses aposto que ela vai acordar com torcicolo de tanto que joga esse cabelo durante os encontros.
Sobrou para mim sentar ao lado do outro rapaz que me analisava de cima a baixo enquanto eu… Bem, fazia o mesmo com ele.
Mesmo sentado dava para perceber que ele era um cara alto. Talvez uns 10 ou 15 cm mais alto do que eu. Sorriso bem branco e largo, olhos castanhos e uma barba tão bem feita que tenho certeza que ele frequenta salão de beleza. Barbeiro nenhum é tão preciso em fazer uma barba assim.
Ele era bonito e isso me intimidava um pouco. Confesso, homens bonitos me deixam um tanto quanto insegura. Não sei o que falar. Não sei como agir. Não sei o que fazer. E sempre acabo fazendo tudo ao contrário do que gostaria.
Mas bem, dessa vez eu já estava tão desencanada que não tinha perigo nenhum. As minhas expectativas estavam no mais absoluto zero. Então tudo bem. Sem expectativas, sem frustrações, não é?
– Prazer, Daniel – ele disse enquanto eu pegava o cardápio e fazia sinal para chamar o garçom.
– Luiza. 28 anos. Jornalista. Nas horas vagas eu leio e visito a minha mãe – respondi apressadamente na esperança de que ele nem começasse com todo aquele papinho mole e besta que as pessoas tem quando estão se conhecendo.
Ele arregalou os olhos, deu uma risadinha, abaixou a cabeça e não falou mais nada.
Quer dizer, por alguns minutos.
Jessica já estava toda empolgada na conversa com Marcelo e me ignorou fortemente quando perguntei se ela queria alguma coisa para comer. Acho que a última coisa que ela estava pensando naquele momento era em comida. Bem, azar o dela. E sorte a minha. Assim sobraria mais para mim.
Não perdi tempo e fui pedindo uma coisa de cada que via no cardápio. Burrito, enchillada, taco, nacho, quesadilla… Era bom que o meu estômago estivesse preparado, porque hoje ele ia fazer hora extra.
– Acho que alguém aqui não come há alguns… anos – disse Daniel, fazendo todo mundo cair na gargalhada. Até o garçom. Ri junto para não me sentir ainda mais envergonhada do que aquela situação já me fazia sentir.
Respondi monossilabicamente todas as tentativas de Daniel de puxar assunto enquanto esperava a comida chegar. Ele não pareceu se incomodar muito. Eu menos ainda.
Passei a noite enfiando comida atrás de comida dentro da boca. Estava tudo delicioso, mas cheguei em um ponto onde eu nem sentia mais o gosto da comida. Eu comia por comer, apenas. Botava na boca, mastigava e engolia. Sem pensar muito. Porque se eu parasse para pensar, meu cérebro com certeza concordaria com meu estômago de que não cabia mais nem pensamento e eu seria obrigada a parar de comer. E bem, parar de comer resultaria em disponibilidade para conversar. E Deus me livre conversar com aquele cara lindo, divertido e inteligente que puxava papo comigo. Onde eu ia enfiar todas as minhas expectativas e inseguranças? Nem no rabo eu podia porque naquela altura do campeonato, até ele já estava completamente cheio.
No final da noite, Jessica e eu fomos embora juntas. A casa dela fica um pouco antes da minha, então sempre que saímos, dividímos o mesmo Uber. Dessa vez não foi diferente.
No meio do caminho, eu senti alguma coisa subindo. Eu sabia o que era. Era toda a minha idiotice da noite voltando para me fazer odiar a mim mesma um pouquinho mais. Porque eu comi tanto? Tinha mesmo a necessidade de comer em uma única noite a mesma quantidade que uma família pequena come em uma semana?
Segurei no braço de Jessica e disse respirando fundo:
– Amiga, vou vomitar.
– Aqui não, Luiza! Vai sujar todo o carro do moço – respondeu Jéssica levando a mão a minha boca. Como se fosse impedir alguma coisa de sair de lá…
Não teve jeito. Veio forte e incontrolável como uma tsunami. Vomitei em mim, na Jessica e claro, no carro do moço.
Desculpa, amiga!
Desculpa, moço!
Desculpa, eu mesma!
Desculpa, vida!