Uma vez, na minha infância, a família se reuniu para uma fotografia. O fotógrafo gritou para que todos sorrissem. Naquele dia, eu havia perdido a minha boneca preferida, meu pai me colocara de castigo porque eu tinha brigado com meu irmão e a vovó ainda estava internada por causa da asma. Eu não sorri.
Esta fotografia está em um porta-retratos, na sala de jantar da casa dos meus pais. Gosto do olhar corajoso da menina que não obedeceu ao comando do fotógrafo. Relembro como foram tantas as vezes, na minha vida, em que fui forçada a sorrir sem estar com vontade. Penso na hipocrisia que me rodeia e aquela foto envelhecida renova a minha esperança.
É que vez ou outra volto a sentir meu peito inflamado, como naquele dia da minha infância. Nem sempre tenho certeza sobre o que me dói. Uma cicatriz antiga ou uma saudade recente? Ou é o espelho que, vira e mexe, me lembra do quanto sou insignificante perante as dores do mundo?
Enquanto sentidos me queimam por dentro, sei que nações estão destruindo umas às outras e a si mesmas; que bombas atômicas esperam pela terceira guerra mundial; que ditaduras se mascaram de democracia; que extremistas matam por causa da religião; que a imigração desordenada é indesejada e que uma população nervosa e desacreditada está em ebulição.
Sinto raiva pelas filas enormes nos atendimentos médicos dos postos de saúde e pelo excesso de escândalos e corrupção na política. Enquanto escrevo este texto, alguma mulher está sendo estuprada.
Sob meu edredom quentinho, assisto a reportagens de pessoas que morrem de fome, de frio e de medo, e não sei se fico tonta de vergonha (culpa?) ou por causa do vinho.
Outro dia, ao tentar deixar a internet de lado, tive uma revelação: estamos cada vez mais livres do conservadorismo (podemos ser o que e quem quisermos), mas cada vez mais presos à tecnologia moderna (não conseguimos nos desligar de aplicativos e celulares). Estamos sendo substituídos por máquinas e robôs que roubam nossos empregos e nossa humanidade. E a nossa liberdade de expressão está sendo oprimida por um tal novo mundo admirável e politicamente correto.
Perco a vontade de sorrir quando penso nisso tudo, e volto à fotografia da minha infância: não quero uma felicidade dissimulada. Também não quero camuflar a minha angústia, nem quero ser igual àqueles que aceitam o sem sentido da vida. Quero ser selvagem sem ser ingênua: “quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade” (Aldous Huxley, em “Admirável Mundo Novo”), pois quero viver a desgraça sem a obrigação de disfarçá-la com um sorriso cordial no rosto.
É que os dias passam, mas as mágoas permanecem dobradas como lenços envelhecidos no bolso da calça. O tempo passa, mas não vai embora, nem fica: ele nos revisita com suas cicatrizes (e fotografias), culpas e saudades.
Talvez não haja tempo suficiente para resolver o que não tem explicação. Resta a nós descobrir a nossa própria verdade: viver sob o controle de consumismo, egoísmo e alienação (espalhando sorrisos editados, mesmo quando nada está indo bem) ou viver sob a vulnerabilidade humana — como selvagens de nós mesmos — com infortúnios e alegrias, mas aprendendo a deixar doer.
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