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O Drama da Infidelidade Conjugal

Todo mundo sabe que naquele casal há duas cabeças e um chifre. Todo mundo sabe, menos o portador do acessório. Ou sabe, e faz de conta que não é com ele. Os parentes sabem, os amigos sabem, os inimigos também sabem, mas ninguém comenta abertamente um atributo desses, de modo que fica o dito pelo não dito, e o chifrudo ganha o benefício da dúvida.

-Será que ele sabe? Será que ela sabe?

Quem pode saber NÃO diz – e dessa forma o caso ganha contorno de mistérios que pode durar para sempre, até que o relacionamento espúrio acabe por desgaste, ou até que a idade chegue e os hormônios entrem em regressão. Isso quando não acontece o divórcio.

Eu nem falaria sobre esse tema inglório se não fosse para analisar o assunto sob uma perspectiva mais generosa.

Pode haver generosidade nesse assunto? Pode sim. Basta que a sociedade se conscientize de que o casamento é mais do que um compromisso de fidelidade assumido diante de Deus e dos homens.

O casamento é um compromisso de sentimentos bem delineados que envolvem carinho, respeito, companheirismo, fidelidade, parceria, compatibilidade, e sobretudo, amor.

O ideal é que o maior deles seja o amor, mas não qualquer tipo de amor. É preciso que seja um amor de qualidade tão intensa que, ano após ano, ainda conserve intacto o desejo.

E é ai que as coisas complicam: quem pode desejar o que já é seu? O desejo está sempre vinculado àquilo que ainda não temos. Mas o casamento é uma instituição tão sagrada, manchada por uma legalidade tão esquisita, que passa o certificado de posse logo no primeiro dia e ai tá feita a besteira.

Onde entra a lei há confronto com o amor. O amor não gosta de submeter-se à lei, e a lei não aceita perder para o amor.

Como conservar intacto o desejo por algo que já é nosso? Não apenas um dia, mas todos os dias, de todos os meses, de todos os anos, para o resto das nossas vidas? Quem pode continuar desejando o amor que chegou aos 15, 20 ou 25 anos, quando se tem mais de 40, e as muitas águas já afogaram todas as nuances do desejo, de modo que só resta uma relação empossada sobre direitos bem estabelecidos?

Há quem possa!

Não tenho a fórmula, mas tenho capacidade para observar e concluir que mesmo 30, 40 anos depois, alguns casais parecem se desejar tanto quanto se desejavam logo de início. Não é sorte a deles é pura sintonia fina! Quem conseguiu esse resultado não foi um dos dois, ou os dois, mas o acaso que uniu as pessoas certas, com preferências e olhares convergentes. Não dá trabalho? Lógico que dá. O trabalho é diário. Um deslize qualquer coloca tudo a perder e a magia vai para o ralo. Ocorre que essas parcerias sempre se estabelecem entre seres sensíveis, e os seres sensíveis já se sabem, são donos de muita sensibilidade para a troca. Por isso, o trabalho.

Mas não é sobre esses que quero falar. Esses são os certinhos. Quero falar sobre os erradinhos.

Quero falar sobre aqueles que perderam o desejo ao longo do caminho, e permanecem erradios em posições corretas.

Entre esses, duas espécies: aqueles que colocam o dever conjugal sobre todas as coisas, e fazem de tudo para manter os hormônios fora do ponto de ebulição – o que não é difícil já que a idade puxa tudo para baixo-, e aqueles que não se conformam com a perspectiva de morte anunciada, e por conta disso, dão as suas escapadelas, voltam a paquerar, namorar, e exercer a arte da sedução, nos bastidores do silêncio.

Os adeptos do time do dever sem desejo tornam-se voluntariamente senis antes do tempo. O corpo mal cuidado segue a linha descendente da alma. Falta-lhes o frescor. Neles, a juventude é uma fonte que secou de repente, e por conta disso buscam compensação na comida e nos afetos que lhes são lícitos.

Já os adeptos do time das escapadelas demonstram o perfil de vivos entre os mortos: ainda se preocupam com o corpo e seguem tendências comportamentais afinadas com a época atual, e não com mil novecentos e antigamente. Não raro voltam a ser adolescentes, querem causar em todo lugar que chegam, e perdem um pouco a noção do ridículo. Acerca deles se diz : “ainda dá um bom caldo.”

Só para relembrar, falei sobre dois grupos: sobre aqueles que ainda se amam e se desejam, e sobre aqueles que de uma forma ou de outra, continuam se amando, mas não se desejam mais.

Sim é possível amar e não desejar. Ama-se com outro tipo de amor, com um amor benevolente que deseja o melhor para o ser amado, mas que não deseja o ser amado. O tesão sumiu no meio do caminho, mas restou o amor revisitado.

E dentro desse último grupo – dos que amam e não se desejam, há um subgrupo que se divide em duas categorias: os que desistiram de viver como um casal apaixonado, mas vivem como dois velhinhos empenhados na instituição casamento, conservando todos os direitos e deveres, e fazendo sexo esporadicamente; e os que desistiram da fidelidade para se sentirem vivos, mas ainda conservam a instituição casamento, ignorando os deveres de monogamia e fidelidade.

Pode acontecer de um dos cônjuges optar pela monogamia fiel e o outro optar pela infidelidade fiel. Infidelidade fiel é aquele tipo de infidelidade em que um dos cônjuges vive as suas aventuras, mas preza pela conservação do matrimônio.

Pode acontecer. Nesse caso, o chifre refulge na cabeça do mais conservador e faz dele um ser envolto em mistérios: sabe ou não sabe?

Eu não julgo ninguém, não me espanto com nada, sou fiel à máxima: “cada um sabe a dor e a delícia de ser quem é.”

Tenho o maior respeito por Danielle Mitterrand, esposa do ex presidente francês François Miterrand, que acompanhou durante anos a traição do marido e, ainda assim se manteve ao lado dele. Atribui-se a ela o texto desta carta que transcrevo, justificando a sua posição de contemporizar sempre, confrontar jamais.
Texto de Danielle Mitterrand, esposa do ex-presidente François Mitterrand, ao povo francês

{…}

“Vivi com François 51 anos; estive com ele em muito desse tempo e me coloquei sempre.

Há mulheres que não se colocam, embora estejam; que não se situam embora componham o cenário da situação presumível.

Uma vida de altos e baixos.
Na época da Resistência nunca sabíamos onde iríamos passar a noite – se na cama, na prisão, nos bosques ou estendidos por toda a eternidade.

Quando se vive assim em comum, cria-se uma solda e a consciência de que é preciso viver depressa.

Concentrar talvez seja a palavra.
Por isso tentei entendê-lo, relacionar-me com sua complexidade, com as variações de sua pessoa e não de seu caráter…Quem entende ou, pelo menos luta para compreender as variações do outro, o ama realmente. E nunca poderá dizer que foi enganada ou que jamais enganou. Não nos enganamos, nos confundimos quando nos perdemos da identidade vital do parceiro, familiar ou irmão.
Quem não conhece, não tem enganos.
Nas variações do outro, não cabe o apaziguador que destrói tudo antes do tempo em forma de tranquilidade.
Uma relação a dois não deve ser apaziguada, deve ser vibrante, apaixonada, e não, tediosa.
Nessa complexidade vi que meu marido era tão meu amante quanto da política.
Vi, também, que como um homem sensível poderia se enamorar, se encantar com outras pessoas, sem deixar de me amar.
Achar que somos feitos para um único e fiel amor é hipocrisia, conformismo. É preciso admitir docemente que um ser humano é capaz de amar apaixonadamente alguém e depois, com o passar dos anos, amar de forma diferente. Não somos o centro amorável do mundo do outro. É preciso aceitar, também, outros amores que passam a fazer parte desse amor como mais uma gota d’água que se incorpora ao nosso lago.
Simone de Beauvoir dizia bem, que temos amores necessários e amores contingentes ao longo da vida.

Aceitei a filha de meu marido e hoje recebo mensagens do mundo inteiro de filhos angustiados que me dizem:
– “Obrigado por ter aberto um caminho.
Meu pai vai morrer, mas eu não poderia ir ao enterro porque a mulher dele não aceitava”.

É preciso viver sem mesquinhez, sem um sentido pequeno, lamacento, comum aos moralistas, aos caluniadores e aos paranóicos azedos que teimam em sujar tudo.”
Espero que as pessoas sejam generosas e amplas para compreender e amar seus parceiros em suas dúvidas, fragilidades, divisões e pequenas paixões.
Isso é amar por inteiro e ter confiança em si mesmo.”

 

 

Ana Maria Ribas Bernardelli

Escritora compulsiva, descobri a minha vocação escrevendo cartas. Imaginei-me poeta e enviei para Adélia Prado alguns dos meus melhores poemas, pelo correio, juntamente com uma carta. Ela teve a gentileza de me retornar dizendo: “você escreve cartas admiráveis.” Entendi. Esqueci a poesia e passei a escrever cartas. Cada texto que escrevo é uma carta e o leitor é o destinatário dessa carta. Tem dado certo. Escrevo e assino. Com carinho, com afeto, e com as minhas experiências de vida.

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