Embora alguns pensem que o princípio do karma exista apenas na doutrina budista, na realidade pode ser encontrado em quase todas as tradições espirituais. Geralmente é exposto de forma simples: “Se você for bom, irá para o céu, você será feliz. Se você for mau, irá para o inferno, você sofrerá.” Nessas tradições, o princípio da inevitabilidade das conseqüências, que chamamos karma, é como um trem com apenas dois destinos: céu e inferno. A visão budista é a de que o trem tem muitas paradas intermediárias. Quanto maior a bondade de uma pessoa, maiores as suas experiências de felicidade. Quanto maior a negatividade de uma pessoa, maior o seu sofrimento e dor. A realidade atual do nosso dia-a-dia é o resultado kármico dos nossos pensamentos, palavras e atos, nesta vida e em vidas passadas.

Algumas pessoas têm dificuldade com a visão mais extensa que o budismo possui do karma porque não acreditam em reencarnação. Como não podem constatar que elas próprias ou qualquer outra pessoa terão uma existência futura, ou que tiveram alguma existência anterior, não conseguem aceitar a ideia de renascimento. Mas o fato de que não conseguimos nos lembrar de vidas passadas ou vislumbrar vidas futuras não é motivo suficiente para não acreditarmos nelas. Há muitas coisas na quais temos confiança, apesar de não podermos exergá-las ou constatá-las empiricamente. Como amanhã! Não podemos provar que amanhã vai acontecer, mas estamos prontos a apostar que sim. As pessoas não podem provar que, em uma certa idade, vão se aposentar, viver daquilo que reservaram, ter uma vida tranquila e se divertir; no entanto, muitos estão economizando para isso. Da mesma forma, a incapacidade de recordar ou antever outras vidas não significa que elas não existam.

O karma pode ser comparado a uma semente que, em condições adequadas, dará lugar a uma planta. Se você colocar na terra uma semente de cevada, pode ter certeza de que obterá um broto de cevada. A semente não vai produzir arroz.

A mente é como um campo fértil — coisas de todos os tipos podem crescer nela. Quando plantamos uma semente — um ato, uma palavra ou um pensamento — num dado momento produzirá um fruto que irá amadurecer e cair na terra, perpetuando e incrementando aquela mesma espécie. Momento a momento, plantamos sementes de causalidade potentes com nosso corpo, fala e mente. Quando se juntarem as condições adequadas para o amadurecimento do nosso karma, teremos que lidar com as conseqüências das coisas que plantamos.

Embora sejamos responsáveis por aquilo que semeamos, esquecemos que lançamos aquelas sementes e, quando amadurecem, damos crédito a pessoas ou coisas fora de nós pelo acontecido, ou então as culpamos por isso. Somos como uma ave pousada sobre uma rocha que consegue ver sua sombra, mas que, quando voa, esquece-se de que a sombra existe. A cada vez que pousa, a ave pensa que encontrou uma sombra completamente nova. No momento, temos um pensamento, falamos ou agimos. Mas perdemos de vista o fato de que cada pensamento, palavra e ação produzirá um resultado. Quando o fruto finalmente amadurece, pensamos, “Por que isto aconteceu comigo? Não fiz nada para merecer isto.”

Uma vez que tenhamos cometido uma ação negativa, a menos que ela venha a ser purificada, viveremos as suas conseqüências. Não podemos nos esquivar da responsabilidade, nem tentar fazer o karma desaparecer por meio de justificativas. As coisas não funcionam assim. Todo aquele que pratica um ato irá infalivelmente viver os seus resultados, quer positivos, quer negativos.

Cada movimento dos nossos pensamentos, palavras e atos é como um ponto no tecido da nossa futura realidade. Latentes em nossa experiência presente estão oceanos de karma vindos de incontáveis vidas passadas, karma este que, nas condições apropriadas, frutificará.

Para encontrarmos liberação do samsara (ciclo de nascimentos e mortes) precisamos trabalhar no nível das causas, não no nível dos resultados — o prazer e a dor que aparecem como conseqüência do nosso comportamento. Para fazer isso, precisamos purificar nossos erros passados e modificar a mente que planta as sementes do sofrimento, precisamos purificar os venenos mentais que perpetuam o karma infindável. Esse processo é chamado “fechar a porta da não-virtude”, ou seja, evitar conseqüências kármicas com a tomada de medidas preventivas, não mais dar vazão às faltas da mente através das nossas ações.

Nós falamos em karma positivo, negativo e neutro. Os atos que geram carma positivo levam a felicidade pessoal e felicidade para os outros. Karma negativo provoca sofrimento para nós mesmos e para os outros. Quando nossa intenção é beneficiar os outros, criamos pensamentos, palavras e ações virtuosos e karma positivo. Quando somos motivados pelos venenos da mente, criamos pensamentos, palavras e ações não-virtuosos e karma negativo.

O karma neutro é gerado por ações inócuas, ações motivadas nem pelo desejo de ferir nem pela intenção de ajudar. Por não ter efeito positivo algum, é considerado não-virtuoso. Por essa razão o karma é muitas vezes discutido somente em termos de positivo ou negativo.

A motivação altruísta pode levar a karma positivo exaurível ou inexaurível. Criamos karma exaurível quando nossa motivação é beneficiar os outros, mas o nosso quadro de referência continua sendo de curto prazo. Por exemplo, podemos dar de comer a uma pessoa que tenha fome ou cuidar de alguém doente, mas nossa meta continua sendo temporária, não a de ajudar aquela pessoa e todos os demais seres a despertar dos ciclos de sofrimento. Conseqüentemente, a felicidade que resultará da nossa ação virtuosa será temporária e terminará quando o bom karma que tivermos criado com aquela ação se exaurir. Ele não levará a liberação do samsara (ciclos de nascimentos e mortes).

Quando uma ação é praticada com a intenção de que uma determinada pessoa, bem como todos os demais seres, não só encontrem felicidade temporária como também acordem da existência cíclica, ela produz karma positivo inexaurível. Esse karma resulta não apenas em felicidade nos reinos superiores da experiência; em termos últimos, resulta em iluminação.

Trecho do livro “Portões da Prática Budista” de Chagdud Tulku Rinpoche

 

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