Conhecimento

O SILÊNCIO CONFORTÁVEL DOS QUE SE AMAM PROFUNDAMENTE

Às vezes, a extrema falta de intimidade nos obriga a falar qualquer coisa com alguém que está por perto, na tentativa de quebrar aquele silêncio incômodo. Estar em silêncio ao lado de alguém, sem que isso cause constrangimentos, é ao meu ver o auge da intimidade entre duas pessoas. Minha avó gostava de um ditado que nos dizia sempre: “Se a palavra é de prata, o silêncio é de ouro”. Para mim, que às vezes sou inundado por uma necessidade quase vital de manter-me em silêncio, como se houvesse um selo invisível cerrando minha boca, esta visão a respeito do silêncio, da falta de necessidade de falar é, em alguns momentos ou situações, uma dádiva a que dou muitíssimo valor.

Minha avó – de quem tanto falo – era uma pessoa muito simples, porém de uma sabedoria enorme. Seu olhar sobre a vida, muito me inspirou e tem inspirado. Sempre que conversávamos, eu lhe falava: “vó, um dia ainda escrevo sobre sua vida”. Ao que ela me respondia sempre: “quem se interessaria pela vida, pelos pensamentos de uma velha sem estudo?”. O que percebo é que cada vez que escrevo sobre essas situações cotidianas e corriqueiras, muitas pessoas se emocionam e se interessam. Na verdade, o que a humanidade quer é o simples. Neste texto, então, quero falar apenas sobre a capacidade que eu e ela tínhamos de estar confortável, mesmo em silêncio.

Por todo o período em que minha avó esteve internada, após sofrer um infarto, nós nos revezamos para acompanhá-la no hospital. Aquela noite seria a minha vez de servir-lhe de acompanhante. Durante a visita, a fisioterapeuta veio fazer sua avaliação e nos disse que era preciso que o acompanhante conversasse bastante com ela, pois assim a vovó exercitaria a fala. No instante em que a doutora falou isso, eu olhei pra minha avó e disse: “ihh vó, logo hoje que é a minha vez. Não foi uma boa escolha. A senhora sabe que eu quase não falo nada”. Vovó esboçou um sorriso e com imensa dificuldade balbuciou: “você sempre falou o suficiente, meu neto”. Aquelas palavras me confortaram imensamente.

Minha avó me conhecia como poucos. Nunca fui o tipo de pessoa efusiva, que demonstra sentimentos com facilidade. Sempre fui, em verdade, muito ensimesmado, cerimonioso. Causam-me desconforto e estranhamento, até hoje, pessoas muito expansivas, exageradamente íntimas, que necessitam a todo tempo de demonstrações de afeto, de declarações, de palavras. Sempre achei isso muito cansativo. Diante de minha avó, no entanto, eu sempre pude ser o mesmo menino calado, taciturno, curto de palavras, que gostava de subir à sua casa para ficar ao seu lado, em silêncio. Às vezes à beira da cama, vendo-a dobrar roupas recém-recolhidas do varal, outras vezes, encostado na máquina de costura, brincando com botões, carretilhas e retalhos, ou ainda, sentado à mesa, enquanto ela catava o feijão ou descascava legumes.

Vovó não insistia em arrancar palavras de minha boca, não me enchia de perguntas o tempo todo. O silêncio entre nós era confortável. Ela compreendia que eu gostava muito mais de ouvir do que falar. “Meu filho, você não é de falar muito. Só observa.” Eu arqueava as sobrancelhas e sorria. Em silêncio.

Essa possibilidade de estar ao lado de alguém, podendo guardar meu silêncio, sempre me agradou. Desde menino, sempre pensei demais. A mente fervilhava, elaborava, analisava tudo, o tempo todo. Falar, para mim, sempre foi custoso demais. Até hoje. Trago em mim desde sempre esse desejo de silêncio, essa necessidade de aquietar-me. Pois somente quando me calo é que ouço a voz que fala dentro de mim. A voz daquele que, mesmo sendo eu, é um outro que mora em mim, que me conhece de fato, que me compreende e me aconselha. Aquele que se alimenta do meu silêncio, da minha mudez, que toma forma e habita meus pensamentos. Esse outro que surge no exato instante em que silencio. Preciso ouvi-lo. Sinto sua falta. Conto com ele. É ele quem me dá o equilíbrio, que me ensina a calar.

É esse outro “eu” quem também segura firme as palavras que desejam sair de minha boca, e realimenta meus pensamentos, fazendo-os girar dentro de mim, transformando-os, aparando arestas, lapidando. É ele quem grita dentro de mim, tentando me proteger dos meus rompantes. É o tal que me faz respirar fundo, engolir a seco, e começa a contar comigo: “um, dois, três…”, sempre que pressente que hei de ganhar mais, permanecendo calado. É obvio que nem sempre estou plácido, sereno, o suficiente para ouvi-lo. Mas é justamente nestes momentos em que não o deixo agir é que mais me arrependo.

Falar demais sempre me faz muito mal. Assim como me incomodam profundamente pessoas muito prolixas e verborrágicas. Gente redundante, palavrosa, me irrita imensamente. Gosto muito de ouvir os que respeitam as pausas, que pensam antes de falar, os que permitem intervalos. Para mim, uma relação entre duas pessoas – seja ela qual for – atinge a perfeição quando o silêncio não causa desconforto ou constrangimento. Ter com quem falar é, às vezes, imprescindível, no entanto, ter alguém que consegue se calar ao teu lado é vital. Pois é na escassez da palavra falada que os pensamentos dialogam, as almas conversam.

Meus amigos mais caros são exatamente os que compreendem o meu silêncio, que respeitam a minha mudez intermitente, o meu exílio voluntário. São os que têm permissão para entrar na minha clausura, pois são capazes de caminhar ao meu lado sem fazer barulho. Meus amigos são aqueles que sabem ler os silêncios da minha cadência e não atravessam o meu ritmo. Sabem fazer soar com exatidão tanto as notas como as pausas dos meus compassos. Sabem ler a partitura da minha vida. Entendem a minha música.

Vovó e eu tínhamos esse refinamento. Ela conhecia o meu silêncio. Não precisava das minhas palavras para saber o que eu estava sentindo. Eram os nossos olhos que proseavam, trocavam confidências. O silêncio não incomodava. Naquela última noite em que estivemos a sós, quando lhe faltavam forças para dizer palavras, foi com o silêncio que nos despedimos. Foi porque aprendemos a silenciar que conseguimos trocar aquelas últimas palavras, sem dizê-las.

Em pé ao lado da cama, enquanto eu olhava seu rosto, eu pensava no quanto eu amava aquela senhora, no quanto sua vida, suas histórias, seus ensinamentos tinham sido determinantes na construção da pessoa que eu havia me tornado. Ela me olhava nos olhos, como se ouvisse meus pensamentos. De novo, o silêncio. De minha parte, o silêncio habitual, das horas em que meus lábios cerram de tal maneira, que as palavras parecem não encontrar meios de escapar. O silêncio que minha alma necessita pra falar dentro de mim. Dela, o silêncio resignado, da impossibilidade física de falar.

Nós ficamos um bom tempo, ali, de mãos dadas, olhando nos olhos um do outro. Trocando nossas últimas confidências silenciosas. Ela, então, num esforço tamanho, levou minha mão até o seu rosto e a beijou, com carinho. Suspirou profundamente. E, então, esboçou um leve sorriso. Apesar da tristeza que insistia em meu coração, eu intuí que se tratava de um momento muito especial. Com aquele beijo, com aquele leve sorriso, minha avó me dizia pela última vez o que nunca foi preciso de palavras para dizer.

Naquele instante, eu me transportei no tempo, e vi novamente o menino que corria ao terreno baldio, catava três florezinhas no mato, corria pra entrega-las, e saía às carreiras, envergonhado, tímido. Já naquele tempo, ela me sorria e consentia com os olhos. O silêncio desde então prescindia das três palavras, as mesmas que meu coração ouviu naquela noite em que nos olhamos pela última vez. Ainda hoje, é esse silêncio confortável que ameniza a minha saudade, pois quando silencio é que ainda sou capaz de ouvir a sua voz doce a trazer paz e conforto ao meu coração.

 

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