O tempo que me habita não é o tempo das coisas. As coisas, elas têm um tempo próprio. Elas começam e acabam e transformam a gente nesse durante, num ritmo que é delas – e isso aí vira o nosso tempo. Mas as coisas, elas são como as estações do ano. Por exemplo, eu me pergunto como as árvores conseguem superar os invernos. Você não? Você nunca se espanta? Olhando pra elas lá, firmes, imperiosas, isoladas, nuas?
Admiro a paciência do carvalho. A impassividade dos pinheiros. Elas têm a compreensão profunda da hora certa, a paciência da espera para as coisas com hora marcada. É que as árvores vivem a eternidade do tempo certo. Elas não têm nem antes nem depois: são somente o agora.
Já eu… eu não. Ao contrário de mim, as árvores não têm vontade. Você já viu uma árvore ansiosa? Uma árvore em crise de pânico?
Como seria possível para nós, filhos do acaso ou de pais neuróticos, saber a precisão do tempo de cada coisa? Como acertar o tempo certo, com a exatidão da folha, que se recolhe, impassível, na espera de desabrochar com mais beleza? Esse instinto de relógio cuco não me pertence – desses que não atrasam um segundo e vêm com um pássaro impiedoso para não perder uma chance de me lembrar que tudo tem um tempo próprio: o amor, a solidão, o sexo, o riso.
Alguns povos tinham como sagrado esse papo do tempo das coisas, da medida exata, do momento presente. Mais que uma elegia ao equilíbrio, era o culto ao instante. Eles não subestimavam o poder do agora. Admirei. É um exercício para os fortes esse de lembrar de nunca esquecer que tudo pode mudar a qualquer momento. Diante disso, eu especulo: bastaria a demanda correta, um gesto, uma exigência para acertar o passo de cada um na dança da existência, que é sempre rumo ao fim? Seria possível conviver em paz com o que está sempre se esgotando?
Olhar o presente de frente é saber que só ele existe. É viver na finitude, no que escorre pelos dedos. Viver com isso tudo na sua cara exige a franqueza das crianças e dos estúpidos. Porque você vai cair na tentação de esquecer que tudo, absolutamente tudo, acaba. Você, assim como eu, vai se perder nas bobagens do dia a dia ou transformar a agilidade da moça do mercado em uma pedra filosofal capaz de determinar o sucesso ou fracasso da sua existência – e resumir isso tudo apenas numa atitude inadequade e mal direcionada, para não apontar tantos dedos… Porque é perturbador lembrar o tempo todo que tudo, absolutamente tudo, passa.
Menos o tempo das coisas.
O tempo das coisas é eterno. Mesmo que você não esteja mais presente, que tenha decidido ir embora e me deixar aqui, ou mesmo quando a gente decide abandonar tudo e vem aquela ânsia de sair pelo mundo e recomeçar. Também nessa hora o tempo das coisas está lá, pra colocar você no seu devido lugar. E você, quando saiu, deixou em mim o tempo da sua ausência. Nunca o do seu retorno. A volta, ela é sempre mais rápida. Tudo fica mais fácil quando a gente já conhece o caminho. Mas decidir não voltar demanda a bravura e a inocência daqueles que sempre acreditam. Será que a gente ainda poderia se encontrar, sem querer, em uma outra curva do caminho?
Difícil. Eu queria poder decretar uma lei que impedisse que algumas frases fossem compostas. Algumas palavras deveriam ser como elementos químicos, ter naturezas incompatíveis, combinações impossíveis de acontecer, impensáveis. Talvez assim eu conseguisse tornar algumas ações impraticáveis, algumas dessas que eu pratiquei, que você inventou. Elas seriam possibilidades que não existiriam mesmo nos sonhos mais loucos. Mas os sentimentos, assim como as palavras, são elementos complexos, independentes, que se ligam das formas mais estranhas para criar uma dinâmica particular. Eles se tornam mais profundos do que o que se deseja ou se espera deles, num compasso maluco que nos ensina, mais uma vez, a precisão da hora certa.
Por isso, veja bem, a importância do tempo das coisas, você me entende? Não dá pra acelerar ou deixar pra trás o ritmo dos sentimentos sem se tornar um hipócrita, um cretino ou cínico. Eles, como as coisas, têm o tempo que tem que ter e não dependem mais de mim ou de você ou de ninguém. Mesmo que pareça impossível concentrar no corpo a calma das árvores, o tempo das coisas acontece em nós. Justo em nós, que ficamos sempre perplexos pelas dissonâncias do que nos acontece. Justo em nós, que olhamos assombrados para o nada, nosso destino, nosso fim. Justo em nós, que precisamos transformar em nosso o tempo do outro… – sem jamais esquecer que ele é do outro.
E eu? Eu tenho que aprender a me demorar mais. A me demorar mais em você, nas coisas. Precisamos de mais tempo. Não sou só eu que me perco na duração do instante. É que as palavras – e junto com elas os sentimentos – se encontram e se combinam de forma abrupta na trama dos eventos, eu acho que só para determinar algumas escolhas. Me aconteceu você. Eu aconteci em você. Abortamos. Tempo errado.
Por isso, eu preciso encontrar uma forma de conquistar a impassividade dos pinheiros que sabem de cor a hora de cada pinha. Eu sou sempre antes, sempre cedo demais e, quando eu me dou conta, já é tarde demais. Aí o que me resta é perambular pelas dobras do tempo, quando ele deixa de ser linear, e se dobra em mim, na minha dor, na minha incapacidade em apreender o ritmo do mundo. Nessa hora ele habita o pensamento, ali se vive tudo ao mesmo tempo – nesse espaço impossível – o antes, o depois e o agora. Não importa a ordem. Será que é assim que abandonamos o que já foi sem nos lançarmos, como uma flecha, ao abismo que é o futuro?
Foi assim que eu aprendi que tem coisas piores do que ficar sozinho. Poderia não ter amigos. Poderia ser incapaz de lapidar a palavra, ou, tanto pior, eu poderia ser feia.
Só não pode ser cedo demais ou tarde demais. Agora preciso esperar que o próprio tempo dissipe esse aborto que é o ~ cedo demais ~ .
Nessa hora eu invejo profundamente toda e cada árvore. Elas vivem os invernos da alma com leveza. A tristeza, ela também é parte da vida. Então vou falar uma coisa, dessas que todo mundo sabe mas não tem tem muita coragem de falar em voz alta: precisamos aprender o tempo do triste. Eu e você. Para lembrar que ele também é tempo e, como tudo, passa. Só que eu, eu tenho uma natureza alegre. Ela é pouco tolerante ao tempo do cinza. Uma combinação difícil. Como conciliar forças tão divergentes? Se eu tivesse a natureza dos bambus, me curvaria, quieta, nos dias de vento e esperar passar. Se eu cultivar na alma a natureza de todas as árvores, será que eu consigo aplacar a fúria da pressa?
Porque o tempo, o tempo é tudo o que temos. O tempo das coisas que duram ou das que terminam. Há uma dignidade no fim. E há uma dignidade no tempo dos sentidos, assim como há uma dignidade na tristeza também.
Só assim podemos conviver com nossos erros e acertos ou nossas vidas destruídas: aceitando as coisas com o tempo de cada uma. De frente. No presente. Porque também há uma dignidade no fracasso. E há uma dignidade inclusive no desespero – a mais terrível forma de tristeza. É uma tristeza que não se quer se saber triste nem aceitar o tempo da espera. Mas também é quando a dor do erro descobre que não tem mais o que esperar. Quando não há o que esperar, o tempo aquieta. Paralisa.
Aí você me pergunta: e você?
Eu?
Eu desesperei – enquanto todos encaravam, com horror e espanto, a fragilidade de uma alma incapaz de se render ao tempo das coisas.