Trazer os amigos dos filhos para casa pode dar trabalho e despesa, mas também nos descansa porque se entretêm mais e têm conversas conosco que não teriam se estivessem sozinhos ou apenas em família.
Quem leu a quadrilogia A Amiga Genial, de Elena Ferrante, autora cuja identidade permanece um mistério, mas foi considerada pelo The New York Times “uma das grandes escritoras contemporâneas”, fica preso à sua escrita, aos seus personagens e histórias. Elena Ferrante escreve sobre pessoas normais usando palavras normais, e isso agarra do princípio ao fim porque as histórias dos outros fazem sempre eco nas nossas histórias.
A Amiga Genial começa por narrar a amizade entre duas crianças de um bairro pobre e problemático nos arredores de Nápoles, mas rapidamente se converte numa sucessão de episódios que revelam um círculo alargado de amigos e famílias que se entendem e desentendem conforme os dias, os acontecimentos e os laços que vão tecendo entre si durante anos a fio. Nestes quatro livros, que começam com a amizade entre Lila e Elena, quando ainda andam na escola, e termina quando ambas têm mais de sessenta anos, há amores exaltantes e ódios exaltados, traições e conflitos, surpresas e alegrias, nascimentos e mortes, conquistas e perdas. Há de tudo, como na vida de todos.
Talvez aquilo que mais perturba e fascina neste livro seja a influência dos pares e dos amigos na vida de cada um. Mais do que os romances e as desavenças, sejam elas amorosas ou sociais, trespassadas pelos confrontos políticos de cada época e as eternas lutas entre gangs, aquilo que nos atrai é a substância das relações boas e más entre pessoas das mesmas gerações e, insisto, o amor dos amigos. Um amor testado ao longo de décadas marcadas por grandes convulsões, um amor nem sempre bem vivido ou compreendido, mas contrastado na realidade de cada um e conferido no fim. Um amor que permite a todos construírem-se e reforçarem a sua identidade. Um amor que deixa cicatrizes e marcas, que convoca ao perdão e à compaixão, que nem sempre parece óbvio, mas existe e é suficientemente forte para munir e cimentar a fortaleza interior de cada um.
Os amigos influenciam radicalmente os amigos, não há volta a dar. Saber usar esta influência de forma positiva é uma coisa, deixar-se pressionar ou dominar pelos pares é outra coisa completamente diferente pois enquanto uns ajudam a construir, os outros existem para destruir. Pais, professores e educadores sabem bem o poder das relações entre amigos e ninguém ignora o ascendente que uns têm sobre os outros. Escreveram-se bibliotecas inteiras sobre a lendária ‘peer pressure’ e como todos passamos por isso algures nos anos da adolescência, todos experimentamos na pele esse mesmo fascínio, essa atracção que sentimos por aqueles de quem gostamos e por quem queremos ser gostados.
Ser aceito pelo grupo, ter amigos e influenciar os pares são aspirações humanas mais que legítimas. Ninguém escapa a esta demanda interior e, nesta lógica, vale a pena observar comportamentos. Falo especialmente de pais e profs, que são quem tem mais poder de influenciar para além dos amigos, e são quem ocupa um posto privilegiado de observação.
Mesmo na era digital, com tantos amigos e influências virtuais, e não ignorando que a esmagadora maioria dos jovens pertence à geração Erasmus, que precocemente os leva a viver fora de casa (por vezes à distância de um oceano) é possível identificar bons e maus ventos entre quem gravita à volta dos nossos filhos e dos nossos alunos. Sabemos que as vítimas de assédio e bullying escondem esta realidade durante demasiado tempo, mas se estivermos atentos há sempre sinais e conseguimos detectar sintomas.
Por vivermos na era digital, em que tanta coisa nos escapa, e por sermos pais e professores de jovens que passam a morar sozinhos demasiado cedo, é ainda mais importante perceber a autoridade que os amigos exercem sobre os amigos. E, por oposição, identificar o domínio que os maus companheiros exercem sobre aqueles que sacrificam sem escrúpulos. Curiosamente, quem mais nos pode ajudar a separar estas águas são os amigos. Os verdadeiros, claro.
Durante os anos em que trabalhei com Daniel Sampaio e fiz com ele todas as séries de programas Verdes Anos aprendi para sempre alguns ‘truques’ (salvo seja, pois nem há truques nem pistas infalíveis na educação e ele é um dos especialistas que mais advertem para isso, pedindo inclusivamente aos pais, educadores e professores que rasguem os seus livros depois de os lerem, para não terem a tentação de agir ‘by the book’), dizia eu que aprendi coisas que fizeram uma grande diferença na minha vida de mãe e professora.
“Todos os pais deviam incentivar os filhos a levarem os amigos para casa” disse-me Daniel Sampaio frisando que esta atitude não devia depender do estatuto social e, muito menos, das condições logísticas da casa, se era grande ou pequena, bonita ou feia. “Ter os amigos dos filhos em casa desde muito cedo é uma rotina que permite conhecer melhor os nossos filhos, mas também saber quem são os mais chegados, aqueles que mais os influenciam”. É completamente verdade e tenho essa dupla experiência como mãe, mas também como madrasta, pois foi essa a minha primeira condição maternal, por assim dizer.
Trazer os amigos dos filhos para casa pode dar trabalho e despesa, mas também nos descansa porque se entretêm mais e têm conversas connosco ou na nossa presença que não teriam se estivessem sozinhos ou apenas entre irmãos, em família. Quanto ao trabalho, é realmente mais pesado, mas a desarrumação e todas as canseiras são amplamente compensadas. Relativamente à despesa, a vinda da tribo de amigos pode implicar uma devastação na despensa e no frigorífico, mas também pode ser estrategicamente gerida com pratos que esticam e encolhem consoante o número de pessoas à mesa.
Confesso que mesmo antes de conhecer Daniel Sampaio já era adepta deste método, uma vez que fui madrasta sem filhos meus durante uma década e sempre trouxe os amigos dos meus enteados para casa, mas devo a Daniel Sampaio a confirmação científica, digamos assim. Graças aos seus conselhos de médico psiquiatra e especialista em desenvolvimento emocional, psicológico e relacional, passei a infância, a adolescência e pós-adolescência do meu filho rodeada de amigos dele. Estabelecemos um dia por semana em que podia trazer todos os amigos que quisesse para almoçar e combinamos que seria sempre esparguete à bolonhesa, um dos tais pratos que esticam e encolhem sem aumentar muito a despesa familiar. O contrato durou anos a fio e graças a isso pude conhecer bem os amigos e ainda melhor o meu filho. Mais, pude aplicar bons castigos, super eficazes e surpreendentemente transformadores, quando foi preciso. Bastava dizer que naquela semana os amigos não podiam vir almoçar. Aconteceu duas vezes, apenas, mas foi penoso. E sei que para o meu filho foi duro ter que assumir perante os amigos que estava de castigo e essa era a pena.
Se agora conto tudo isto é para prestar homenagem aos bons conselheiros, aos bons especialistas e aos bons amigos. Para sublinhar o seu poder resgatador e reforçar a minha gratidão por todos aqueles que influenciam positivamente os nossos filhos, os nossos alunos, os nossos sobrinhos, os filhos dos nossos amigos e os amigos deles. O simples facto de chegarem a nossa casa e conversarem com naturalidade e familiaridade sobre tudo e nada ajuda incrivelmente a educar, a resolver conflitos, a diluir tensões, a derrubar muros, a evitar o isolamento e até a não entrar em braços de ferro.
Sem devassas, com muito tacto e muito respeito é possível manter conversas que seriam impossíveis sem estes amigos geniais que se sentem em casa connosco. Falo de conversas sensíveis sobre questões íntimas ou fracturantes, mas também sobre temas mais privados como os relacionamentos e ainda sobre temas difíceis como as doenças graves, a morte, o assédio moral e sexual, as perseguições e outras aflições por que passam todos os jovens sem excepção.
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