Ele não tem nem 6 anos. Tem o corpo mirrado como de um menino que corre demais e se alimenta de menos, por mais que a mãe insista que ele termine o almoço antes de voltar a brincar. O barulho interrompe a história que o pai contava antes do sono. O menino queria que o som fosse apenas parte de uma história de faz-de-conta, mas os contos de fada deixaram a Síria há muito tempo. O teto desaba e tudo é poeira. A vida em família, os brinquedos no quarto, os irmãos mais velhos. Tudo vira escuridão.
Escuridão. Medo. Espera. Ele não tem nem 6 anos e pensa: “será que isso é morrer?”. De repente um feixe pequeno de luz, alguns gritos. Braços fortes retiram seu pequeno corpo do meio do concreto duro. A claridade cega seus olhos. Não só a claridade, mas a poeira e um líquido que escorre quente pelo rosto. Largam sua pequena estatura numa cadeira de plástico de um carro de luzes brilhantes e cheiro de álcool. Ele apenas se pergunta, “será que aqui é o céu?”
O líquido quente insiste no olho esquerdo. Ele limpa o olho para enxergar melhor aquele céu. O líquido é vermelho e mancha-lhe a mão. O menino se assusta, limpa a mão suja antes que alguém perceba. Não sabe bem o que é aquilo, pois nunca vira tanto vermelho antes. Talvez em pequena quantidade em algum joelho ralado aqui, ou uma feridinha ali. Mas não tanto desde vermelho. Esse vermelho não lhe parece certo. “Não, esse vermelho não pertence ao céu.”
Vermelho não é do céu. Não o vermelho sangue. O menino aprende antes dos 6 anos que vermelho sangue é cor preferida dos homens que lutam pela fé, pela terra sagrada, pela ordem divina, pelo poder mais justo, ou qualquer outra justificativa que lhes dê algum conforto antes do dormir. Dormir depois de jogarem bombas em prédios onde dormiam as crianças. Onde sonhavam as crianças. Mas essas crianças estão tão longe de nós. Nos tiram o sono por alguns dias, nos chocam por umas semanas, aparecem em todos os noticiários e jornais, e logo viram reciclagem. “Ehhh mais uma medalha de ouro pro país tal no esporte tal dentro das olimpíadas que receberam o primeiro time de refugiados da história!! Uhu!” Sim, eu lembro da abertura, e todos nós celebramos os atletas cuja pátria é longe de ser um lar. A pergunta que me fiz é: que chance estamos dando a todos os outros despatriados? Que chance tem o menino da ambulância de completar 6 anos?
As notícias do menino seguem na televisão, repetidas vezes, dizendo que aquela imagem irá mudar o mundo. Nos fará mais humanos, mais responsáveis. A ONU pede trégua de 48h. “48h!!! Esse povo vai ter apenas 48h de paz?? E depois?”. A verdade me sufoca. Aperta meu peito como escombro de um prédio bombardeado. A imagem do menino segue passando, de novo, e de novo. Seu olhar perdido, sua confusão, sua solidão. Sua solidão frente ao mundo que lhe vira as costas.“Somos ocupados demais para lidar com a sua dor, garoto. “ Não somos? “Não temos como ajudar.” Não temos? “Este problema não é meu.” Não é? Como posso te ignorar, menino, se tu estás em todas as televisões da minha casa, reforçando o descaso do mundo inteiro, o meu descaso pessoal?
Na mesma hora das minhas lágrimas por aquele menino da ambulância, eis que entram na sala os meninos de 6 anos lá de casa, os meus irmãos gêmeos a quem confiam em mim, sua irmã mais velha, todas as respostas. “O que houve com o menino, mana?” Olho para a inocência dos meus meninos, tão protegidos, tão amparados, tão distantes de tudo que é do mal. E quando o mal está distante, a gente se dá o conforto de esquecê-lo ou minimizá-lo com falsas esperanças, pelo menos até o próximo menino ser notícia.
-Esse é o menino que vai acabar com a guerra. Por causa deste menino, a humanidade vai repensar porque brigamos tanto.
– Igual ao menino da praia, mana?
O Murilo indaga, com sua memória de elefante, me fazendo lembrar de outra dolorosa explicação que dei sobre outro menino sírio, o Alan Kurdi, encontrado desfalecido não menos que um ano atrás, na tentativa de fugir da Síria.
– Sim, Murilo. Igual ao menino da praia. Como dizem as notícias, essa imagem… esse menino vai mudar o mundo.
O Mateus me olha por debaixo dos cachos de anjo, e com a maturidade de seus 6 anos recém completos, ele interrompe o meu idealismo irracional com certa tristeza no olhar:
– Mas mana… ele é só um menino.
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