Quantas vezes nessa vida a gente se atropela! Atropela o corpo, atropela a alma, atropela o tempo de maturação de uma experiência, de uma sensação.
A gente atropela os dias, com todas as tarefas que temos, com os deveres mais importantes, com as coisas mais relevantes, a gente não guarda 10 minutos para sentar, respirar e pensar nos passos dados, na direção dos voos. Não dá tempo de parar o atropelo para meditar sobre nós mesmos.
A gente atropela os sinais do corpo, coloca mais um antiácido no estômago, deixa as necessidades básicas para depois, melhor responder a emergência dos e-mails primeiro. A gente atropela a mastigação do almoço com digitações no celular. A gente atropela o momento de conversa com o parceiro por coisas que temos que postar. A gente atropela um olhar, uma flor, um filosofar mais profundo com um vomitar nossas dores e falar sobre a vida dos outros.
A gente atropela nossos aprendizados diários com pensamentos que não vêm ao caso, a gente atropela a possibilidade de outros entendimentos, de outras interpretações com a nossa raiva instaurada, com a nossa dor pré-concebida, com os nossos vícios de ser o que já sabemos ser.
A gente se atropela dando ouvidos demais ao que, no fim das contas, não interessa nada na nossa estrada.
A gente atropela um olhar bonito, um cheiro bom, um momento único com a vontade de que as coisas cresçam e vinguem no momento seguinte.
A gente atropela um momento de chegada, uma fase de alívio, uma veia rasgada, um coração rompido. A gente atropela o luto e o sentimento recém-nascido.
A gente atropela um abraço de uma criança, a gente atropela tantas árvores todos os dias, a gente atropela as boas ideias, a poesia falando mal do vizinho. A gente atropela as soluções com um excesso de problemas, a gente atropela a maré mansa de dentro com imposições e expectativas. A gente atropela quem não se atropela e senta um pouco todos os dias teimosamente no meio da estrada dos atropelados.
A gente atropela os dias, a geografia, a nossa história de vida. A gente atropela o eu te amo da mãe no telefone, a gente atropela as presenças com a nosso constante foco na falta, a gente atropela os pequenos significados com expressões gigantes que vivemos esperando aterrissar na nossa janela.
A gente atropela o silêncio, o nosso e o dos outros, atropela o futuro com nossos medos bobos, atropela o passado, manchando com nossos apegos e desgostos… atropela o presente com a acidez do desconforto de não saber mais estar na própria pele.
A gente se atropela.
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