Ser feliz talvez fosse isso: realizar-se dentro do possível, comemorar cada degrau subido, e perdoar o que não foi vivido!
Ela se perdoava.
Dentro de si havia a menina que foi obrigada a engolir o choro, algumas noites mal dormidas e dores pelo corpo de coisas mal resolvidas.
Parou na frente do espelho e enxergou a vida inteira até aquele momento. O rímel borrado abaixo dos olhos não ocultava o brilho no olhar. Havia luz, alegria, satisfação.
Tinha acabado de encenar o ato final, e antes de remover toda a maquiagem, se permitiu abrir um sorriso e se curvar num gesto sincero de gratidão a si mesma.
Não tinha se tornado médica como a família tanto queria. Também não alcançara sucesso nos palcos como tanto desejou. Mas naquele momento, encerrada a peça que escrevera de próprio punho, percebeu que ser feliz talvez fosse isso: realizar-se dentro do possível, comemorar cada degrau subido, e perdoar o que não foi vivido.
Era uma mulher no meio da ponte.
A distância que deixara atrás de si equivalia à distância que teria que percorrer dali pra frente. Nem tudo tinha sido fácil, nem tudo brilhava como desejava, a perfeição brincava de se esconder. Mas agora ela olhava para o espelho e reconhecia que diante das dóceis tragédias que enfrentara, das perdas, ganhos e pequenos arrependimentos, havia motivos para comemorar.
Havia chegado onde chegou do jeito que pôde chegar.
E nunca tinha sido tão feliz como agora, equilibrando seus pratos na balança, intercalando a correnteza e o remanso dentro de si, aprendendo a lidar com os “nãos” de cada dia, ouvindo sua voz interior, perdoando as imperfeições da vida e confiando mais no que sua intuição dizia.
Prometera muito a si mesma.
E muitas outras promessas foram feitas em seu nome, para que ela cumprisse o combinado quando chegasse a hora. Seguindo o script, não decepcionaria aqueles que ama, mas a perfeição cobraria seu preço.
Seguindo seu coração, certamente desapontaria alguns, mas o ganho seria a pele que arrepia, o mergulho profundo sem medo de se estilhaçar, o brilho no olhar, a coragem de se buscar, a ousadia de ser verdadeira sem necessidade de se desculpar.
Ela se perdoava.
Dentro de si havia a menina que foi obrigada a engolir o choro, algumas noites mal dormidas e dores pelo corpo de coisas mal resolvidas. Tudo isso ficara para trás, e por isso agora ela sorria para o espelho e agradecia.
Nem tudo tinha sido perfeito, ela sabia. Porém, mesmo com todas as cicatrizes e fissuras, não desejava voltar ao tempo da inocência.
Havia descoberto as delícias de ser feliz sem se culpar por isso, não se exigindo de forma sobre-humana em prol de uma perfeição que lhe poupava do risco, mas que também lhe roubava o riso.
Agora ela compreendia.
A vida não era o roteiro que ela havia programado, rascunhado e passado a limpo.
A vida era, principalmente, o que ficava fora da linha, além dos parágrafos, entre vírgulas e reticências. Era o que acontecia no susto, na surpresa, naquilo que a deixava indefesa.
Era o que ficava por dizer, o que a surpreendia distraída, o que embaçava seu olhar e permanecia nas entrelinhas do dia a dia.
Num gesto simbólico, abandonou relógios e calendários. Tinha nascido poesia, mas aos poucos ganhara rigidez e agonia.
Agora fazia as pazes com a alegria, não aquela misturada à euforia, mas sim com a graça amistosa e quase serena que agora lhe fazia companhia. Sorria de si para si, e aceitava as pequenas rugas que começavam a se juntar ao redor de seu olhar.
Era uma mulher no meio da ponte. Sabia que a vida lhe reservava presentes inesperados pelo caminho, e dessa vez não iria se sentir endividada por aceitar.
A vida não estava aí para ser suportada, e sim abraçada e enfrentada…
*Foto de Chermiti Mohamed em Unsplash
__ “É a capacidade de um indivíduo em possuir uma conduta sã num ambiente insano, ou seja, a capacidade do indivíduo sobrepor-se e construir-se positivamente frente às adversidades” — Resiliência Humana
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