A Complexa Relação entre Psicopatia e Inteligência: Reflexões a partir da Neurociência e da Ficção
A série Mindhunter (Caçador de Mentes), da Netflix, trouxe à tona a figura do psicopata frio e calculista, frequentemente associado a altos níveis de inteligência. Personagens como Edmund Kemper e Dennis Rader são apresentados como indivíduos altamente racionais, reforçando o estereótipo cultural de que psicopatas possuem uma inteligência acima da média. No entanto, estudos recentes na área da neurociência e psicopatologia sugerem que a relação entre psicopatia e alto QI é mais complexa e multifacetada do que a ficção nos leva a acreditar.
Segundo o Dr. Fabiano de Abreu Agrela, pós-PhD em Neurociências e licenciado em Biologia, presidente da ISI-Society, a sociedade de alto QI mais restrita do mundo, e coordenador da Intertel Brasil, sociedade também voltada a indivíduos de alto QI, a psicopatia “não necessariamente implica em uma inteligência superior. Embora existam subgrupos que demonstrem habilidades cognitivas avançadas, como a manipulação verbal, a grande maioria dos indivíduos com traços psicopáticos não apresenta um QI elevado.” Dr. Fabiano, também especialista em estudos sobre inteligência humana, aponta que essa correlação é mais específica do que a cultura popular imagina.
Psicopatia e Inteligência: O Que Diz a Ciência
Estudos acadêmicos têm se debruçado sobre a relação entre psicopatia e inteligência, desmistificando crenças populares. Uma pesquisa publicada na The Journal of Forensic Psychiatry & Psychology em 2019 revelou que certos traços de manipulação interpessoal em psicopatas, como a habilidade de controlar e enganar, podem se correlacionar positivamente com a inteligência verbal em contextos específicos, como em mulheres criminosas com histórico de violência. Essa habilidade, muitas vezes explorada na ficção, é mais uma competência específica de manipulação social, e não uma representação de uma inteligência elevada em todos os aspectos.
Em contraste, estudos indicam que indivíduos com traços antissociais e impulsivos, outro aspecto central da psicopatia, tendem a apresentar correlação negativa com o QI. Uma pesquisa recente publicada na Psychological Assessment em 2023 mostrou que pessoas com maior impulsividade e comportamento de risco apresentam níveis mais baixos de inteligência geral. Esse fator antissocial compromete a capacidade de planejamento e controle inibitório, resultando em uma aptidão cognitiva menor, evidenciando que nem todos os psicopatas possuem as habilidades estratégicas frequentemente retratadas em produções de entretenimento.
Psicopatia e Mitos sobre Inteligência
A ideia de que todos os psicopatas são altamente inteligentes é amplamente refutada por análises científicas. Uma meta-análise publicada na European Journal of Personality em 2019 demonstrou que a psicopatia, de forma geral, apresenta uma correlação fraca e negativa com a inteligência global. Embora alguns indivíduos com traços psicopáticos se destaquem em habilidades cognitivas específicas, como manipulação interpessoal, a maioria exibe inteligência emocional reduzida e déficits em outras áreas cognitivas.
Esse comprometimento da inteligência emocional é um aspecto central que, muitas vezes, é negligenciado. Estudos como o publicado na European Psychiatry em 2022 indicam que indivíduos com traços psicopáticos apresentam uma inteligência emocional significativamente inferior, o que prejudica suas capacidades de reconhecer e manejar emoções, tanto em si mesmos quanto nos outros. Esse fenômeno ajuda a explicar por que muitos psicopatas, apesar de uma possível inteligência cognitiva elevada, falham em formar relações interpessoais saudáveis e duradouras.
A Perspectiva da Neurociência e a Importância de Diferenciar Facetas
De acordo com o Dr. Fabiano de Abreu Agrela, a neurociência contemporânea permite uma análise mais profunda dos transtornos de personalidade e suas implicações cognitivas. Ele afirma que “a psicopatia é um transtorno multifatorial e não pode ser simplificada a partir de um viés que a associa diretamente à alta inteligência”. É essencial, segundo o especialista, considerar as múltiplas facetas do transtorno — como impulsividade, manipulação interpessoal e comportamento antissocial —, que impactam de maneira diferente as capacidades cognitivas.
Dr. Fabiano ainda destaca que a ficção, como Mindhunter, muitas vezes distorce essas relações para fins dramáticos, o que pode gerar uma percepção errônea sobre a natureza da psicopatia. Na realidade, a complexidade do transtorno e suas variações exigem uma análise mais nuançada, especialmente no contexto de estudos em neurociência e psicologia comportamental.
O Impacto da Ficção na Percepção Popular
Séries como Mindhunter desempenham um papel significativo na formação da opinião pública sobre transtornos mentais. No entanto, como pontua o Dr. Fabiano de Abreu Agrela, é importante distinguir entre ficção e ciência. Representações exageradas de genialidade associada a comportamentos psicopáticos podem confundir o público quanto à verdadeira natureza do transtorno. A ficção, ao destacar aspectos dramáticos, muitas vezes simplifica as questões complexas da psicopatia, o que reforça estereótipos incorretos.
Embora o estereótipo do psicopata brilhante e estrategista tenha sido perpetuado na cultura popular, a ciência revela uma realidade muito mais complexa. A relação entre psicopatia e inteligência é multifacetada, e a ideia de que a psicopatia está invariavelmente associada a altos níveis de QI é desmentida por estudos contemporâneos. A neurociência continua a explorar essas nuances, visando esclarecer equívocos e fornecer uma compreensão mais precisa sobre o comportamento humano, contribuindo para uma visão mais realista e informada sobre o transtorno.
Referências
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*DA REDAÇÃO RH.