Entrevista publicada em janeiro de 2008 na Revista Época, mas que mantém sua valia. Segue reprodução.
Falar sobre as dores vividas é essencial para superar um trauma. Ao fazer isso, a pessoa é capaz de reorganizar sentimentos. Até aí, nenhuma novidade. O psicólogo Julio Peres, de 38 anos, foi além. Conseguiu mostrar que a conversa modifica o funcionamento do cérebro. A pesquisa, tema de doutorado de Peres em Neurociências e Comportamento pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, deve ser publicada em junho na revista Journal of Psychological Medicine. O estudo foi feito com 16 pacientes que sofreram estresse pós-traumático parcial (que não apresentam todos os critérios de diagnóstico). Eles passaram por oito sessões de psicoterapia. Os indivíduos narraram o momento traumático várias vezes. Depois, foram convidados a relembrar situações difíceis que viveram anteriormente e a sensação positiva que tiveram ao superar o problema. Exames de tomografia ao final do tratamento revelaram que o funcionamento cerebral é modificado com a narração. “Quem passou pela psicoterapia apresentou maior atividade no córtex pré-frontal, que está envolvido com a classificação e a ‘rotulagem’ da experiência”, diz Peres. “Por outro lado, a atividade da amígdala, que está relacionada à expressão do medo, foi menos intensa.” Isso fortalece a tese de que falar sobre o problema ajuda a pessoa traumatizada a controlar a memória da dor que sofreu.
ÉPOCA – Como foi realizado o estudo?
Julio Peres – Aplicamos questionários para estabelecer as modalidades sensoriais (o rosto do ladrão, o cheiro da gasolina, o barulho da freada do carro) que permaneceram na mente dos indivíduos. Antes da psicoterapia, essas sensações estavam exacerbadas. Depois dela, verificamos que o valor sensorial das memórias traumáticas diminuiu. O que aumentou foi o valor narrativo, junto com a atividade do córtex pré-frontal. É um achado importante. Significa que, à medida que a narração do evento aumenta, as respostas emocionais e as sensações são atenuadas.
ÉPOCA – Como o senhor teve a ideia do estudo?
Peres – Muitos profissionais da saúde não creditam o devido valor ao tratamento pela ausência de marcadores biológicos do efeito psicoterápico. Quis estudar a produção científica com o uso do método de neuroimagem funcional com a psicoterapia. No Brasil, é o primeiro estudo desse tipo. Fiz uma revisão de todos os estudos publicados no mundo. Qual foi minha surpresa? Existiam apenas 20 estudos sobre o assunto. E a neuroimagem já existe há 20 anos!
ÉPOCA – Dá para dizer que a psicoterapia muda o funcionamento cerebral?
Peres – Sim. A maneira como o cérebro processa as informações muda. Os psicólogos deveriam estudar seus pacientes com métodos neurofuncionais. No Brasil, ainda é difícil. Poucas pessoas têm conhecimento sobre o assunto.
ÉPOCA – Qual é o perfil dos pacientes estudados?
Peres – São pessoas que sofreram traumas, mas não preencheram todos os critérios do estresse pós-traumático. São pessoas que passaram por eventos como perda de entes queridos, acidentes, separação, abuso sexual, assalto, seqüestro. Eles representam 30% da população geral.
ÉPOCA – Quem não pode fazer psicoterapia deve compartilhar seus problemas com alguém? Isso também muda o cérebro?
Peres – Sim. Em geral, as pessoas traumatizadas tendem a se isolar. Não verbalizam o evento, não compartilham suas histórias. Justamente pela falta de contar e recontar essas histórias, as pessoas ficam com as memórias traumáticas fragmentadas. Medo, sensações dispersas, sem atribuição de um significado para o que aconteceu. Quando ela constrói esse significado, tem a possibilidade de reconstruir o momento trágico, trazendo um aprendizado daquele evento. Isso alivia a dor.
ÉPOCA – Relembrar a situação traumática não é pior?
Peres – É exatamente isso o que os traumatizados pensam. Lembrar outra vez da dor? É como se o indivíduo voltasse ao horror experimentado. Mas, se ele não falar sobre sua memória, não consegue dar significado e entender o acontecimento. Falar modifica a interpretação. Converse com pessoas de confiança: amigos, familiares, alguém vinculado a sua crença religiosa. O mais importante é que possa de fato compartilhar. Não é falar para qualquer um. Deve ser alguém que tende a acolher. Escrever também é um caminho. O publicitário Washington Olivetto escreveu durante o trauma (enquanto estava seqüestrado). Certamente, isso o beneficiou. É um exemplo de superação.
ÉPOCA – Em traumas semelhantes, as pessoas têm reações parecidas?
Peres – Os estudos mostram que em tragédias naturais avassaladoras, como tsunamis e terremotos, a resposta de cada envolvido é absolutamente diferente. Não existe uma resposta universal ao trauma. Temos estudado o que predispõe à recuperação. O que as pessoas que superam essas situações difíceis desenvolvem como qualidades? E por que aquelas que continuam traumatizadas não conseguem desenvolvê-las, pelo menos por algum tempo?
ÉPOCA – O que fazer para não ficar preso às lembranças de uma tragédia?
Peres – Criar novos objetivos. É ver o acontecimento como uma oportunidade para o aprendizado e o crescimento pessoal. Sentimentos positivos, como o altruísmo, ajudam a pessoa a melhorar rapidamente em vez de sucumbir ao trauma. É essencial não se sentir enfraquecido, incapaz perante o que viveu. E o trauma está muito ligado à incapacidade. Por exemplo, num acidente de carro, a pessoa pensa: “Eu não pude controlar o carro e fiquei preso nas ferragens”. O trauma pode marcar o indivíduo nesse sentido. Ele se sente sem condições de superá-lo. Quem cria uma aliança positiva com aquele momento sai mais facilmente da dificuldade.
ÉPOCA – O que perpetua um trauma?
Peres – Em geral, os traumatizados têm a tendência de querer pagar na mesma moeda. Com pensamentos do tipo: “Mataram minha mulher e agora vou matar cada um desses caras”. Quando existe
o sentimento de vingança, a repetição do ciclo traumático não acaba. Não resolve o problema, e os traumas vão aumentando.
ÉPOCA – Que substâncias o cérebro libera quando a pessoa sofre um trauma?
Peres – O trauma pode se estabelecer de duas maneiras. Uma é a hiperestimulação, que envolve o sistema simpático, relacionado à adrenalina. O indivíduo fica em alerta, irritado, com insônia, pensamentos intrusivos. O outro lado é a dissociação, que envolve o sistema parassimpático e a endorfina. É também uma estratégia de adaptação, de sobrevivência ao evento. Um anestesiamento. Acontece especialmente com crianças que sofreram abuso sexual, porque geralmente o agressor está em casa. E diante disso ela não pode fugir. Ela dissocia, como se não estivesse acontecendo nada. Só que as conseqüências dessa dissociação são gravíssimas. Em geral, viram adultos que não conseguem estabelecer vínculos afetivos. Aquele processo de dissociação ficou tão enraizado, como uma defesa de sobrevivência, que também tende a continuar por um bom tempo.
ÉPOCA – Quanto tempo uma pessoa leva para superar um trauma?
Peres – Depende de cada pessoa, do processamento interno em relação ao ocorrido. No caso do estudo, fizemos oito sessões de terapia, com duração de uma hora e meia cada uma. E essas sessões foram suficientes para o grupo modificar as respostas emocionais. Eles ficaram mais equilibrados psicologicamente.
Após oito sessões de psicoterapia, os pesquisadores observaram mudanças nas seguintes regiões do cérebro
Maior atividade no córtex pré-frontal
Ele está envolvido na classificação das experiências
Menor atividade na amígdala
Ela está relacionada à expressão do medo
Por Suzane Frutuoso
Revista Época, janeiro/2008
Foto: Claudio Rossi/ÉPOCA e reprodução
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