“Tully”, de Jason Reitman, um dos melhores filmes sobre a MATERNIDADE
Tully (2018)
Marlo (Charlize Theron) é mãe de três filhos, que ganha de seu irmão a cortesia de uma babá noturna, chamada Tully (Mackenzie Davis), com quem acaba criando um vínculo.
O texto contém spoilers, então recomendo que seja lido após a sessão.
O talento da roteirista Diablo Cody já era latente em seu primeiro trabalho, a pérola indie “Juno” (2007), mas ela se perdeu na indústria em projetos pouco inspirados, como “Garota Infernal” e “Ricki and the Flash: De Volta Para Casa”, até que finalmente se redimiu com esta delícia que é “Tully”, defendida por uma corajosa Charlize Theron, que se despiu da vaidade, abraçando uma personagem profundamente humana, facilmente identificável, encontrando na direção segura e sempre competente de Jason Reitman um caminho sincero que extrai real ternura do elemento de fantasia na trama.
Marlo deita todas as noites em sua cama, cansada da intensa jornada diária, acompanhada de um marido que prefere dedicar sua atenção à jogatina virtual, sempre com o joystick nas mãos, silêncio incômodo, sequer um olhar direcionado para a mulher com quem divide a vida.
O casal é o retrato mais patético de um relacionamento que foi esvaziado de propósito após a chegada dos filhos, um deles, por sinal, possui um nível de autismo, algo que acaba causando atrito com a diretora da escola.
O marido, obviamente frustrado, busca a fuga contínua, como se não quisesse aceitar o amadurecimento natural e as responsabilidades de sua função paterna. Ela se culpa, começa a enxergar em seu corpo, nos quilos a mais, o motivo para aquele distanciamento brutal.
O roteiro insinua que a gravidez atual, já inserida em um contexto psicologicamente precário, mais que a realização de um desejo consciente, levando em consideração a frieza predominante, tratou-se de puro desespero, tentando suprir a necessidade social por uma fachada de família feliz.
Quando o breve tempo dominado pela impulsividade da paixão dá lugar à ressaca da lucidez, os dois finalmente percebem que o ritual do casamento, por conceito básico, apaga o fogo da ousadia com a água benta da mesmice, o conformismo engessa os sonhos individuais, logo, o próximo passo é sempre buscar a aceitação de outrem, responder na prática a clássica pergunta: “Quando vocês vão ter filhos?”
O esgotamento mental da maternidade, refletido psicossomaticamente nas dores ao amamentar, segue numa escalada perturbadora.
Ao mesmo tempo em que ela se recusa a terceirizar os cuidados maternos, ela reconhece que oferecer insistentemente a chupeta para a criança que chora convulsivamente pode ser a única solução.
Várias situações são filmadas em tom de comédia, mas são profundamente dramáticas, afinal, não há nada engraçado na dor, uma opção inteligente que provoca a reflexão.
O espectador é conduzido por uma espiral descendente, solidão, angústia e nostalgia preenchem existencialmente a mulher, até que o roteiro insere a figura da babá noturna, Tully, uma jovem espirituosa, com um corpo escultural, libertária, leve, engraçada, antítese perfeita da patroa.
Como que por mágica, a simples presença da babá modifica tudo, qualquer problema, outrora motivo de discórdia, passa a ser resolvido em questão de segundos.
O carinho dela com o bebê é surreal, material de contos de fadas, o olhar brilha com cada simples gracejo, tudo é novidade, mais que uma funcionária, ela se torna rapidamente uma querida conselheira.
O mundo não demonstra interesse em escutar o desabafo da mãe sobre a sua maternidade, mas a jovem não apenas escuta atentamente, como também demonstra interesse em entender plenamente a razão de cada atitude errada, ela se importa como nunca ninguém se importou. O lema de Tully: para cuidar do bebê, a mãe precisa ser cuidada também.
A solução é brilhante, a babá é uma projeção que Marlo faz de si mesma mais jovem, uma alucinação que brotou da privação de sono, uma versão pura, livre de todos os vícios advindos das escolhas que tomou nos anos anteriores.
A cena que encerra o filme é esperançosa na superfície, mostrando o marido, pela primeira vez, participando ativamente dos trabalhos domésticos, e, mais que isto, vivendo prazerosamente o momento com a mulher. O que mudou nele?
O acidente grave que quase tirou a vida dela, ou aquele gesto seria o resultado de uma autocrítica, um exame de consciência?
É uma resposta que o filme não entrega. Será que o novo modus operandi terá prazo de validade curto?
A esperteza de Cody é se recusar a repetir o erro da simplificação, o reencontro da esgotada Marlo com seu jovial reflexo no espelho pode ter despertado novamente o gosto pela luta, estímulo precioso, mas como a cena das duas no bar evidencia, a guerra interna parece que está longe de acabar.
Ao revelar que sua versão adulta está realizando o seu sonho (antes do público descobrir o truque narrativo), Tully dá os primeiros sinais comportamentais do momento em que decidiu que o conforto do ritual tradicional seria o seu objetivo, os seus passos iniciais rumo ao inferno pessoal e profissional, já que ela também se viu obrigada a investir em outra área para manter financeiramente aquela fachada.
O mérito maior da obra é desconstruir a ideia de maternidade romanceada, vendida pelos finais felizes das comédias românticas de Hollywood e pelos capítulos finais das novelas brasileiras, evidenciar que o período da maternidade pode ser emocionalmente devastador e, principalmente, que não deve ser uma obrigação social.
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