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A vida muda num instante

Nem só de doce se faz a vida. Nem só de poesia. Nem só de amor. Nem só de felicidade. Há dias amargos, tristes, sombrios, desesperadores.

E não é preciso que façamos nada para alterar o rumo das coisas.

De repente a bússola da felicidade aponta para a direção da infelicidade, e ela nos colhe dentro de casa, sem que tivéssemos nos movido meio centímetro do nosso caminho feliz.

O contraponto nos pega no contrapé da normalidade, dizendo assim:

– “Ei você, você que está sossegado na praia, jogando frescobol com a família, a maré mudou, o céu se tingiu de chumbo, aguente esse Tsunami que estou mandando em sua direção, esse raio que vai cair sobre a sua cabeça, neste exato segundo.”

São os contrapontos do caminho: o claro se torna escuro, o céu se faz de bronze, como de bronze é o gongo anunciando secamente, mecanicamente, que a vida mudou, que ela acabou de mudar.

– Não dá para retroceder um segundo em direção ao passado? – você pergunta.
– Há algum buraco negro na próxima esquina, onde eu possa entrar na máquina do tempo, de volta para o passado?

-Infelizmente, não há. A vida acabou de mudar. Siga em frente. Quem sabe ao final do arco-íris possa haver um pote de ouro.

A vida muda num instante, como tão lindamente descreveu a escritora americana Joan Didion, em seu livro autobiográfico O Ano do Pensamento Mágico:

“A vida se transforma rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar e aquela vida que você conhecia acaba de repente.”

O que fazer com o jantar da noite em que a vida muda de repente?

Jogue fora. Não há reaproveitamento possível.

Aquela comida que estava sobre a mesa, preparada com tanto carinho, jamais poderá ser degustada de novo.

Aquela toalha, aquele serviço de jantar, os cristais transparentes, os lugares demarcados, a familiaridade entre sons, cheiros, e sabores, jamais será recuperada.

Por mais que você queira, quando a vida muda, impede a substantificação de percepções felizes e gratuitas, das quais antes você usufruía e nem agradecia, sequer percebia.

É o tal negócio: “ eu era feliz e não sabia.”

Se você quer saber se é possível ser feliz de novo, eu posso responder:

Não daquele jeito. Não como naquele tempo.

Mas sim, depois de muitos dias que parecem anos, e depois de muitos anos que parecem dias, – porque uma das coisas que se altera é a percepção do tempo – voltam alguns instantâneos de felicidade.

Algumas novas amostras grátis para testar se a terra já foi sarada, se é possível voltar a semear, se ela está apta – de novo – para produzir frutos.

A terra sempre volta a produzir frutos.
A sementeira sempre exibe a sua força germinativa.
A produção de frutos precisa prosseguir porque o tsunami não mata a todos.
Sobram alguns.

E os que ficam, têm fome. Fome de você.

E por causa deles, um dia, você volta a matar a fome daqueles que ainda te amam.

É preciso encontrar um novo jeito para continuar.
É preciso dar tempo ao tempo, para que a mente assimile que a vida, como você a conhecia, não volta mais e uma outra vida lhe espera.

Há que reconstruir um novo cenário, o cenário de um novo tempo. E esse novo tempo, essa nova vida que lhe foi oferecida no meio do caminho, sem que lhe fosse perguntado se você aceitaria a troca, essa vida, – de modo algum, na verdade,- representa o frescor de algo novo, mas o ranço de um mundo velho, feio, antigo, assustador, e muito, muito solitário, temperado com o amor de Deus e a fraternidade dos homens.

É tão estranho que Deus nos ame antes, durante, e depois do Tsunami e mais estranho ainda que sejamos capazes de reconhecer esse amor. Mas somos. E ele é quem nos salva.

Por isso, se você conhece alguém que teve a sua vida mudada num instante, acolha-o como a um recém nascido no planeta Terra.

Trate-o com a delicadeza de um bebê, não se escandalize com o choro fora de hora, não se espante se no melhor da festa ele quiser ir embora, não se ofenda com o seu silêncio repentino, e se ele dormir durante o dia, compreenda: é porque a insônia o venceu nas madrugadas.

Acostume-se com as novas latitudes desse habitante, com os novos parâmetros desse sobrevivente, com os estranhos hábitos desse exilado, até que a memória lhe desbote, e as lembranças se confundam, e ele não saiba mais a qual dos dois mundos pertence, por não pertencer a nenhum.

Ana Maria Ribas Bernardelli

Escritora compulsiva, descobri a minha vocação escrevendo cartas. Imaginei-me poeta e enviei para Adélia Prado alguns dos meus melhores poemas, pelo correio, juntamente com uma carta. Ela teve a gentileza de me retornar dizendo: “você escreve cartas admiráveis.” Entendi. Esqueci a poesia e passei a escrever cartas. Cada texto que escrevo é uma carta e o leitor é o destinatário dessa carta. Tem dado certo. Escrevo e assino. Com carinho, com afeto, e com as minhas experiências de vida.

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