A nossa tribo desenvolve ao longo do tempo réguas capazes de aferir o sucesso de qualquer atividade humana. O sucesso de um casamento, por exemplo, pode ser medido pela sua longevidade. Cada aniversário do casal representa uma etapa vencida. Não por acaso, bodas são celebradas e simbolizadas por materiais que se sucedem em nobreza ano a ano. Papel, algodão, couro, flores, madeira, estanho, cristal, porcelana, prata. Um casal em bodas de prata merece a nossa sincera admiração. Quando ouro, nossa total reverência. Falo sério. Sobreviver ao casamento por meio século é mesmo um feito louvável. Porém, eu me questiono se compartilhar a cama durante décadas, ter os filhos “bem-criados” e algum patrimônio construído são, de fato, indicadores de um casamento bem-sucedido. A nossa — sempre progressista — tribo descobriu recentemente que pais separados também são capazes de criar bem os filhos e que homens e mulheres podem erguer patrimônio de forma independente. Quanto à longevidade do casal, sabemos que pode estar pautada em hipocrisia, opressão, comodismo e, às vezes, companheirismo.
Para que serve o casamento, afinal? Temos a opção de reproduzir em palavras e atitudes as respostas do século passado. A família é a base da sociedade, o casamento a base da família. Podemos acreditar que o casamento é o início do “felizes para sempre”, o ápice natural de uma história de amor. Podemos acreditar em absolutamente qualquer anedota que nos traga algum conforto. Mas, pra valer, por que resolvemos compartilhar todos os dias a nossa mais profunda intimidade com uma pessoa estranha? Experimente abrir mão das respostas imediatas. Talvez, um ponto de partida para começar a responder seja considerar que sempre, conscientes ou não, crescemos ou temos a oportunidade de crescer com os nossos relacionamentos.
Nós nos desenvolvemos a partir da relação íntima com pessoas com as quais não escolhemos nos relacionar, como os pais, os avós ou os cuidadores no orfanato, não importa. No decorrer do próprio desenvolvimento somos capazes de definir quem desejamos por perto. São amigos, parentes queridos, paqueras, namorados, colegas de trabalho, gente virtual e conhecidos para os quais distribuímos mais ou menos intimidade. Concordo que também existe quem prefira se relacionar apenas com cães e gatos. Tudo bem, pois, em certo momento da vida, até o eremita está sujeito a se envolver com alguém a ponto de decidir se casar e deixar à mostra a nudez cotidiana de suas profundezas.
Antes da virgindade pré-nupcial cair em desuso, falava-se com mais frequência sobre consumar o casamento. Realizada a cerimônia, somente no leito matrimonial a união seria validada. Notamos com facilidade que atualmente há muito mais consumação do que cerimônias. Nem por isso o sexo no casamento deixou de ser um assunto delicado. Vejo com naturalidade que haja alguma diminuição na frequência das relações sexuais à medida que avançam os anos de convivência. Por outro lado, parece-me que a qualidade do sexo praticado pelo casal é o que dá o tom para saber se ele faz um bom casamento ou, como diz o psicoterapeuta espanhol Joan Garriga Bacardí, se vive um bom amor. Vale esclarecer que quando me refiro à qualidade não trato das performances aprendidas nos filmes pornôs ou nos manuais do Kama Sutra. Falo da alma, não do corpo.
Não sei o que significa alma para você. Por essa razão eu lhe convido a neste momento defini-la com o máximo de simplicidade. Permita-se imaginar a alma como o segundo corpo de cada pessoa, apenas isso. Imaterial, autônomo, complementar e tão essencial quanto o corpo físico. Olhe para a alma como a fonte do ânimo, da vontade, do foco e da entrega. Ambos os corpos precisam estar ligados de forma intrínseca para que estejamos plenos, realmente presentes na vida e, sem dúvida, nos relacionamentos.
Lembro mais uma vez: crescemos com os nossos relacionamentos. E o casamento talvez seja a relação que mais nos ofereça essa oportunidade porque nos expõe, sem piedade, às nossas próprias mazelas. Encará-las e transformá-las é uma escolha. Nem sempre conseguimos. Quando um casamento começa a definhar a primeira que vai embora é a alma. O corpo fica um tanto mais. Vai ficando. O sexo sem alma pode até funcionar nas relações efêmeras. Nas estáveis resulta em um profundo vazio. Ao se perceber nesse ponto, há quem escolha viver. Resgata a alma, recoloca-a na dança ou leva-a para outra cama. E há quem sempre morra um pouquinho ao deitar. Observam as rachaduras no teto enquanto esperam, quem sabe um dia, celebrar as bodas.