“Porque, quanto a mim, sinto de vez em quando que sou o personagem de alguém. É incômodo ser dois: eu para mim e eu para os outros.” Clarice Lispector
Você é dois: um na cara e na roupagem, o outro, lá no secreto de si.
Existe uma outra pessoa dentro de nós. Ela tem pensamentos que ninguém sabe. Às vezes, são maravilhosos e cheios de boas vibrações por alguém que nem se quer desconfia, outras vezes, essa alguém pode ser muito malvado, mesquinho e carregar secretamente mágoas, rancores e amores.
Esse ser que habita nosso mundo interno é capaz das loucuras mais desvairadas, das fantasias mais bizarras e até de torcer o pescoço de quem tanto lhe incomoda. A vantagem de cometer um crime assim é que ele fica em sigilo para sempre. Está apenas sob as leis dos pensamentos, pelo menos nesse plano. A pessoa dentro da gente não pode ser pega porque só nós mesmos podemos entregá-la. Ela está lá, escondida de baixo da nossa carne. Ela sente pela nossa pele, espia pelos nossos olhos o mundo a sua volta sem que ninguém a perceba.
É nossa parte livre, que faz tudo aquilo que quer, sem culpa, sem vergonha e sem remorso. Está imune ao julgamento alheio, às fofocas, às leis dos homens, bem como à admiração. Pode ser libertadora, assim como nos amedrontar sem jamais ser compreendida. É capaz de nos levar ao paraíso ou à loucura. Somos essa pessoa dentro da gente, mas também não somos. Depende da escolha de quem somos por fora.
A pessoa que somos por fora é vista, notada. Penteia o cabelo. É julgada pelas roupas que usa, pelo jeito, pela cara. Não consegue se esconder como a outra. Disfarça. Ocasionalmente dá certo, mas existem situações em que não. Ela interage e segura os ímpetos daquela que se hospeda em nosso interior. Mais do que isso. Ela se adéqua. Se limita, se restringe. Ela é sã ou, pelo menos, tenta manter o equilíbrio, embora vez ou outra se deixe levar. Mas volta e, então, se culpa, pune-se ou ri de si mesma.
Nem sempre essas duas pessoas estão de acordo. A de fora e a de dentro. Ocasionalmente brigam. Uma é capaz de tentar tomar o controle da outra, raramente obtêm sucesso. É um domínio, geralmente, parcial ou tendencioso. Por vezes, elas rivalizam, antagonizam-se. A moradora do nosso íntimo pode estar triste e melancólica, enquanto a criatura visível é pura alegria e sorrisos. Em outras ocasiões é o contrário. A felicidade no coração é absurda, embora impedida de escapar para fora.
Tem vezes que a pessoa de dentro é malvada, mas também adorada porque a de fora a protege dissimulando e falando o bem. Outras vezes, o coração é puro, mas frágil demais e se perde transformando o nosso eu exterior em pura arrogância. Uma pode gostar de alguém enquanto a outra odeia. E vice-versa. Às vezes, uma sente medo enquanto a outra é corajosa. Ou, o contrário, o delicado exterior mascara a força pulsante interior. Eventualmente, a pessoa de fora está cercada de gente, enquanto a de dentro se encontra na mais nefasta solidão.
E assim, seguimos a vida inteira: sendo esses dois seres que, por vezes, caminham de mãos dadas, mas em outras ocasiões correm para lados opostos parecendo impossível conciliá-los. Entretanto, o momento de equilíbrio, em que ficamos em paz e felizes, é quando as duas pessoas que somos se encontram e podem até ser julgadas como boas, entretanto, já não se importam mais com julgamentos…